quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aprender com as Diferenças

Aprender com as Diferenças
Aprender é construir caminhos
Gil Pena

A aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo humano não são coisas simples. A psicologia e a pedagogia, há muito tempo, ocupam-se em investigar como se dão estes processos. De modo a tornar essa compreensão mais facilmente assimilável, é esperado que surjam ideias ou modelos que contornem as dificuldades que enfrentamos nesse processo de compreensão. Podemos compreender a relação entre organismo e ambiente, expressando a ideia de que o desenvolvimento cognitivo da criança coincide com seu desenvolvimento cultural. A partir desse modelo, podemos claramente perceber que em determinado estádio de desenvolvimento do cérebro e de acumulação da experiência, a criança adquire a linguagem; em outro estádio, domina o sistema numérico; mais à frente, em condições favoráveis, a álgebra. Nesse modelo, percebe-se uma total concordância das linhas de desenvolvimento – o desenvolvimento biológico natural da criança gradativamente transforma-se na linha do desenvolvimento cultural.
Esse modelo considera que estrutura biológica produz o caminho, a estrada que leva ao desenvolvimento cultural. Estradas, como aquisições culturais humanas, existem para transformar nossas viagens em processos simples, lineares, sem interrupções ou desvios. Uma estrada, uma vez pronta, acabada, não nos oferece obstáculos, possibilitando-nos progredir nessa jornada sem sobressaltos.
Estradas são construídas para transformar nossas viagens em um processo simples. A educação da criança seguindo o caminho produzido pelo desenvolvimento cognitivo, pode ser feita sem sobressaltos. Nesse modelo, por suas simplificações, não percebemos que a estrada, o caminho, representa uma aquisição cultural humana. Trafegando atentamente por uma estrada, é possível perceber, no seu processo de construção, uma história de superação dos obstáculos: contornamos uma serra que seria intransponível, estendemos uma ponte sobre um rio ou abismo, terraplenamos, cortamos um morro, aterramos uma baixada. Concluída, a estrada sugere uma convergência, uma transição espontânea, entre a natureza e a própria estrada. A partir da forma como ela se adapta à paisagem, criamos o entendimento de que ela só poderia ser assim, e não de outra forma; a natureza determina o caminho traçado pela estrada.
Do mesmo modo, todo o aparato da cultura está tão adaptado à organização psicofisiológica do homem, que nos parece natural a congruência que existe entre o biológico e o cultural: o plano do desenvolvimento cultural humano já está dado pela organização biológica do cérebro. Nesse modelo, a aprendizagem ou a aquisição cultural humana resultam de um trabalho cooperativo com o que a natureza nos disponibiliza. Esse modelo educativo está incutido em uma perspectiva que pressupõe um homem que possui visão, audição, fala, mãos e funções cerebrais intactas. A técnica e os instrumentos, signos e símbolos empregados nesse processo educativo estão destinados a esse tipo "normal" de pessoa.
Esse modelo é uma simplificação do processo de aprendizado e desenvolvimento humano. Há muitas situações complexas, existentes na natureza, que esse modelo não consegue explicar satisfatoriamente. Ocasionalmente, a educação apresenta-se com novos obstáculos ou desafios, que essa noção do desenvolvimento cognitivo e aprendizagem não consegue contornar ou vencer.
À medida em que surjam novos e diferentes obstáculos, como a pessoa cega, surda ou com alteração de qualquer função cerebral, é possível perceber que o desenvolvimento cognitivo e cultural não são convergentes. Deixados à própria sorte, ao seu desenvolvimento natural, uma criança surda não aprende a linguagem, o cego não saberá ler, a criança com déficit cognitivo não se apropriará das ferramentas da cultura. Essas situações nos impõem pensar de outra maneira: o desenvolvimento cultural e o cognitivo caminham desencontrados. Aprender significa vencer os obstáculos, contornar as dificuldades, estender pontes cognitivas.
A aquisição cultural humana modifica a natureza, superando obstáculos e limites. O caminho não está dado pela natureza; a estrada, como construção humana, consiste em um plano de intervenção que nos possibilita contornar os problemas, fazer voltas que nos levem à solução do problema apresentado. Os caminhos cognitivos que usamos na solução de problemas estão baseados em voltas, rodeios ou atalhos culturais. Ao manipular grandes quantidades, usamos números em ordens de unidade, dezena, centena, milhar etc. A soma desses números não se faz diretamente, mas ordem a ordem, mediante um algoritmo, o que contorna a dificuldade que temos em lidar com essas quantidades brutas. O desenvolvimento cultural, ao criar rodeios, diverge da linha de desenvolvimento cognitivo.
A educação da criança deve proporcionar a possibilidade de aquisição das ferramentas culturais, superando-se as dificuldades, criando rodeios para as limitações que apresenta. A falta de visão não impossibilita a aprendizagem da leitura, se oferecemos um sistema alternativo de símbolos e signos, reconhecíveis pelo tato, como o sistema Braille. A pessoa surda pode "ouvir" pelos olhos, na medida em que decifra as palavras pelo movimento dos lábios de seu interlocutor, apropriando-se da linguagem humana, que constitui o principal instrumento do pensamento. O déficit cognitivo pode ser compensado, se encontramos caminhos culturais alternativos que possibilitem a aquisição das ferramentas culturais pelo indivíduo.
O desenvolvimento cognitivo é um processo de transformação da organização biológica do indivíduo, a partir da aquisição das ferramentas culturais. Não há um caminho dado, por onde deve passar a estrada. Há, sim, obstáculos e, criando desvios, rodeios ou atalhos culturais, construímos o caminho.
Entendida a educação como um processo de luta, de ruptura entre o biológico e o cultural, vemos que é a cultura que abre o caminho para a nossa estrada. Se omitirmos a cultura do processo educativo, somos vencidos pelo biológico, e o desenvolvimento cognitivo não se estabelece. É preciso entender a cultura como o conjunto de ferramentas, de símbolos e signos que o indivíduo usa nesse processo de construção. A cada indivíduo devemos oferecer símbolos e signos adequados conforme a sua própria estrutura e organização biológica.
Levando o modelo de volta ao mundo, podemos compreender que a educação do tipo "normal" de pessoa segue esses mesmos princípios. A mudança radical que representa a passagem do balbucio à linguagem não se pode interpretar como um desenvolvimento biológico, gradativo e linear. A força motriz dada pela cultura é que irrompe o caminho, que abre espaço para que essa transformação ocorra.
Esses dois modelos distintos dão explicações diferentes para a relação entre o desenvolvimento cognitivo e o processo de aprendizagem. A concepção de Vigotski é a de que o aprendizado puxa o desenvolvimento, abrindo o caminho para que esse ocorra: a construção do caminho representa uma luta entre o biológico e o cultural.
A opção por um ou outro modelo é uma decisão humana. A opção do educador, em relação ao seu modelo de pensamento, reflete o seu compromisso histórico com os educandos. A tendência de escolher por um modelo mais simples denota a nossa incapacidade de lidar com as complexidades do mundo, a nossa preferência pela padronização, a facilidade em eliminar determinadas variáveis para que tal modelo funcione. A simplicidade de nossos modelos explicativos tem, a todo momento, de ser confrontada com a complexidade do mundo. Como seres humanos, estamos inseridos em contextos sociais e políticos particularmente complexos. Na visão de Paulo Freire, não se pode pensar o processo educativo sem a conscientização do educando de sua inserção nestes contextos. Aqui, mais uma vez, surge a noção de ruptura, quando buscamos que nossa realização humana ultrapasse os limites impostos pelas limitações do ambiente, seja a própria natureza, seja o contexto social, econômico ou o político. Mais uma vez, temos de resistir a modelos com tendência à simplificação, que eliminam a complexidade do contexto social e político em que estamos inseridos.
Queremos um mundo simples, passível de nossa compreensão, mas o mundo que se apresenta aos nossos olhos é complexo. Na busca pela simplicidade, idealizamos modelos de pensamento, categorizamos e classificamos, padronizamos, eliminamos variáveis, para tornar mais simples a nossa compreensão do mundo. Na medida em que incorporamos esses modelos de pensamento ao nosso modo de viver, é difícil percebê-los como uma construção humana, e nos imaginamos em um universo dado. Como uma estrada que vai de uma cidade a outra torna simples a jornada e nem precisamos nos dar conta dos obstáculos contornados ou vencidos por ela. Às vezes nos maravilhamos com uma ponte, como fantástica obra de engenharia, mas essa e outras engenhosidades humanas obscurecem o obstáculo que existia, e estando pronta, a vemos como integrada à paisagem, e nos parece natural que ela esteja ali. Do mesmo modo, estando incorporada ao nosso modo de viver, nos parece natural a maneira que lidamos e operamos com quantidades numéricas, ou com a linguagem. Rodeios e pontes cognitivas são estratégias culturais do pensamento humano para lidar com os problemas, contornando e vencendo as dificuldades e os obstáculos de estar vivendo em um mundo complexo.
Um mundo complexo não nos oferece apenas um caminho, um traçado possível para sua compreensão. Há encruzilhadas, onde temos a oportunidade de escolher que caminho tomar. Em determinado caminho, deixa-se para traz a diversidade, porque essa estrada não serve a todos. Há a possibilidade de outros caminhos, tentando não eliminar a complexidade do mundo, na diversidade biológica, cultural e social do indivíduo, sem nos abster de nosso compromisso político.
 Criar rodeios, adaptar ou simplificar são artifícios, estratégias culturais, que nos possibilitam aprender e compreender. É ingênuo acreditar que o mundo seja assim simples, como a compreensão que fazemos dele.
O pensador crítico exercita-se no confronto das suas ideias com o mundo, na tarefa difícil de deslindá-lo. Abdicamos de nosso papel de sujeito cultural ao admitirmos o mundo simples, explicado e compreensível, dado por nossa própria concepção cultural. A omissão de nosso papel de sujeito cultural é uma simplificação de conseqüências interessantes. Não apenas criamos a concepção de que o mundo é como nos é dado, e nosso modo de viver vai a reboque da lógica do mundo; somos objetos, não agentes nesse viver, como também matamos a vocação ontológica humana de nos construir como sujeitos e atuar transformando e retransformando o mundo.
*Gil Pena é médico patologista e pai. Dedica-se a estudos na área da educação, dentro da linha do Projeto Roma (http://blog.disdeficiencia.net/2008/12/08/aprender-e-construir-caminhos/)

Nenhum comentário: