domingo, 25 de julho de 2010

A Pedagogia do Esporte x Psicanálise

RAMIREZ, F.

A PEDAGOGIA DO ESPORTE ESCUTA A PSICANÁLISE

In: II Congresso Científico Latino-Americano FIEP/UNIMEP: Piracicaba. p.460-63.

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Resumo



Este artigo faz crítica a pedagogia do esporte na forma como comumente ela se apresenta, ou seja, uma prática centrada no objeto e não no sujeito que a pratica. Assim, questiona-se sobre os modelos pedagógicos vigentes no que tange a relação professor-aluno, técnico-atleta e remete-se à valorização da concepção de sujeito – oriunda da psicanálise – de forma que se focalize na elaboração de uma prática centrada no sujeito que a pratica não naquele que a transmite. Ou seja: de uma prática em que a construção do saber esportivo esteja calcada nas relações de transferência entre professor-aluno, técnico-atleta.



Palavras Chaves –


Introdução



Quando se encontra, no ambiente acadêmico, modelos pedagógicos a serem cumpridos algumas questões – como a viabilidade de tal e tal método adequado para tais e tais grupos – acabam por alcançar maiores valores do que o próprio enquadramento do sujeito com o qual se trabalha. Dentro do esporte infantil estes valores vêm sendo questionados e não é à toa que se escreve que “é preciso uma vivência mais humana do esporte em que jovens, mais que objeto, sejam o centro da atividade, o sujeito” (Marques, 2000).



Esta frase, que para muitos não diz nada além, remete a valorização do sujeito como o único capaz de dizer porque está ali, porque jogar de uma forma não de outra. E dar-lhe a palavra para que ele diga quem é e porque quer fazer as coisas de um jeito não de outro, confere-lhe uma pedagogia que o permite construir seu próprio saber desportivo. De outro modo ele se assemelharia, com seus conhecimentos profissionais, “mais a um cão ensinado do que uma criatura harmoniosamente desenvolvida” (Einstein, 1981, p.29), concepção oriunda de uma estrutura pedagógica ilustrada por técnicos e professores que ditam, constantemente, o que seus alunos ou atletas devem fazer com a bola ou onde eles devem se posicionar em quadra.



É em cima deste princípio – em que o professor ou técnico é aquele que tudo sabe e o aluno ou atleta, aquele que nada sabendo, aprende com ele – e em nome da qualificação, que os modelos pedagógicos, os mesmos que percorrem os ambientes acadêmicos, estruturam-se em suas especialidades. Se pesquisas existem para detectar quantos profissionais de determinada modalidade se especializaram nela é porque atualmente há uma supervalorização de uma cultura onde se tenta reproduzir, em séries, atletas e profissionais capazes de assimilarem, com perfeição, específicas cartilhas pedagógicas.



Fica evidente que neste sistema “ensina-se prescritivamente a ser professor” (Lopes, 1998, p.37) como também se ensina prescritivamente a ser um atleta que sob a ótica deste modelo pedagógico está dispensado de pensar uma vez que as táticas esportivas, as jogadas e os momentos das suas realizações acabam sendo determinadas pela figura do técnico. Trata-se portanto de um sistema que inibe a criatividade pois, impedidos de desenvolverem escolhas autênticas, aos alunos é apenas pedido que manifestem os “pensamentos” (e que estes sejam aplicados) e as “preferências” (e que estas também sejam aplicadas) do próprio professor ou técnico esportivo, como se fosse preferível ao aluno participar de uma “concepção do mundo imposta mecanicamente pelo ambiente exterior” (Gramsci, 1978, p.12) ou de uma concepção de jogo imposta pelo técnico esportivo.



Neste modelo chega-se àquilo que é determinado pelo pensamento com suas respectivas idéias de “inteligência”, de uma prática que exclui a dimensão de sujeito em nome de uma certa objetividade científica (Szterling, 2000, p.08). No entanto, pensando as especializações prematuras, sistemas como este, “sob o falacioso pretexto da eficácia, assassinam o espírito, impossibilitam qualquer vida cultural e chegam a suprimir os progressos nas ciências do futuro” (Einstein, 1981, p.29).



O ato da transmissão na pedagogia do esporte



Ao se encontrar desacreditada enquanto profissão a Pedagogia do Esporte, por ter uma prática defasada em relação à teoria, vive atualmente uma crise ao ser desrespeitada como saber e questionada em relação à sua estrutura de funcionamento. Ela traz consigo uma enorme imprecisão na forma de atuar do professor/técnico que dificilmente é preparado para lidar com os instrumentos da linguagem e da fala pelos quais se estabelece o processo pedagógico. Privilegiam-se, ao invés, os aspectos gerais referentes às teorizações da própria pedagogia e da psicologia principalmente àqueles voltados para o estudo dos processos de aprendizagem e desenvolvimento, construindo a crença de que “basta saber como o aluno em geral funciona para saber como ele se apresenta na prática, de forma específica, inalterável no tempo e no espaço como se o seu pensamento fosse o mesmo desde o homem primitivo até nossos dias” (Mrech, 1999, p.06).



Para a psicanálise há uma diferença entre o transmitir e o informar, sendo que a marca desta diferença se estabelece pelo saber (Mendonça Filho, 1998). Enquanto o informar refere-se à veiculação e ao acúmulo de dados, o transmitir, além, remete a um outro circuito maior, em que é preciso que o aluno tome em suas mãos o que aprendeu e passe a operar com aquilo. Não basta que ele fique apenas com o conteúdo ensinado, é preciso que se estabeleça um saber a respeito do que foi ensinado. Foi Lacan que, baseando-se nas colocações de Vygotski e Wallon, revelou pela primeira vez a importância da fala, da linguagem e do discurso nos processos de transmissão, muito mais do que simples ato de comunicar-se (Mrech, 1999, p.08). O informar parte, ao contrário, de uma concepção linear de motivação, onde basta que os alunos sejam estimulados de um lado para que eles respondam de outro.Há uma crença de que os professores transmitem e os alunos aprendem, mas no máximo, os professores são apenas preparados para entenderem um significado, um sentido da fala do aluno, que é apenas a sua grade conceitual. O que não se percebe é que as elaborações dos alunos podem ter sentidos totalmente distintos daqueles originalmente apresentados por ele.



A admissão de que existe uma diferença entre o transmitir e o informar é o ponto de partida deste trabalho. Sem isso, perde-se o sentido mais amplo da educação que é levar alguém a tecer o saber, a descobrir o que realmente necessita para aprender. Por ser a transmissão algo além de um processo de comunicação e por estar atribuída à fala, à linguagem e ao discurso, ela remete, principalmente, à instauração da transferência.



Transferência e Saber Esportivo



A concepção lacaniana de transferência (e também da interpretação psicanalítica), bem como os problemas que dela derivam, decorre diretamente do conceito de inconsciente, sendo que no ensino de Lacan o inconsciente é pensado e “estruturado como uma linguagem” e, ao se extrair as conseqüências dessa definição, chega-se a uma maneira de teorizar a relação transferencial diferente daquelas promovidas por outros autores. Lacan procura definir uma essência da transferência e encontra esse eixo ao tomar a transferência como uma conseqüência da associação livre. Para Lacan existe uma abertura para a transferência pelo simples fato do sujeito colocar-se em associação livre e é através desta regra fundamental, de dizer tudo um ao outro, que se pode conectar o inconsciente com o saber. Assim, desde este prisma, a transferência é, em primeiro lugar, a relação com o saber (Leite, 2000).



E se o fenômeno da transferência é ele próprio colocado em posição de sustentáculo da ação da fala, em outras palavras, faz-se impossível eliminar o fato de que ela se manifesta na relação com alguém a quem se fala (Lacan, 1961). Então, a transferência, operacionada pela fala, dirige-se sempre a um Outro. O sujeito, pelo simples fato de aceitar a regra fundamental que o coloca na posição de não saber o que diz, cai na dependência de um Outro, que surge da relação desse sujeito com o saber.



Trata-se aqui, ao se levar esta questão à prática pedagógica do desporto infantil, definir o fenômeno da transferência em que o professor-técnico é suposto estar em estado de saber, onde são tecidas suas relações com os outros; ou seja, o aluno-atleta primeiramente é levado ao professor-técnico e se relaciona com ele pelo seu conhecimento, pelo que ele sabe e pelo que falta ao aluno saber, criando-se desta forma vínculos ao saber, ou de outra forma, estruturando-se pela complementação da falta: falta ao aluno-atleta um saber dominado por outro. Define-se então a relação transferencial pela falta e completude, mediante os lugares que as personagens assumem no grupo esportivo, na medida em que este se torna uma só unidade.



Para Lacan, o saber tem limites, não é um saber integral como pensam a pedagogia e a psicologia. Lacan elabora uma concepção de saber como “não-todo”, isto é, sempre irá faltar um pedaço, será incompleto. Cada criança, cada professor terá que tecer o saber a partir da linguagem e da fala (Mrech, 1999). Há uma diferença entre saber e conhecimento. Enquanto o saber é da ordem da elaboração pessoal, de algo a ser estabelecido e tecido pelo sujeito, o conhecimento é apenas um contexto inicial instituído a partir da informação onde o saber que deveria ser uma construção do sujeito passa a ser transformado em um aprender a aprender o saber do outro. Isto porque há a crença na pedagogia atual de que o professor transmite um saber integral quando ensina seu aluno, e este teria apenas que aprender a aprender o saber que lhe foi ensinado. No entanto, o saber que os professores sabem e querem transmitir ao aluno não é o mesmo que o aluno necessita elaborar para aprender a aprender. Para a psicanálise, o saber é sempre uma elaboração individual do sujeito. Algo que ele tem que tecer, algo que ele precisa dar conta, uma esfinge que precisa ser decifrada por cada um.



Uma prática centrada no professor/técnico ou no aluno/atleta?



Pela relação de transferência que se estabelece na prática esportiva entre professor/técnico e aluno/atleta, duas opções acabam por existir: (1) ou o professor/técnico trata o aluno/atleta como objeto e se coloca no lugar daquele que tudo sabe; (2) ou o professor/técnico enquadra o aluno/atleta como sendo um sujeito pulsional que deseja e se coloca no lugar daquele que oferece recursos para que o aluno/atleta construa seu próprio saber esportivo.



A primeira opção trata de uma prática pedagógica centrada no professor/técnico, enquanto que a segunda, em contra partida, tem sua prática pedagógica focalizada no sujeito aluno/atleta, ou seja, trabalha-se com a subjetivação e particularidades de cada jogador, isso considerando que a posição ocupada em quadra não depende unicamente de uma questão estratégica, mas também do que é subjetivo.



Quando uma prática pedagógica se encontra centrada no professor/técnico, constantemente ela se apóia na relação técnico-atleta na condição do primeiro dizer ao segundo o que este precisa fazer com o seu corpo a cada instante da partida, qual é o momento mais indicado a fazer uma finalização, quando se deve fazer uma falta ou uma jogada específica. Situações que deveriam pertencer ao próprio aluno/atleta e não a um personagem exterior. Além deste sistema não promover a criatividade nem estimular o pensamento crítico, neste ponto, os alunos/atletas acabam por se verem através do julgamento do outro e do temor de não continuar ou não ser aceito na equipe. Seus desejos ficam escondidos e não se manifestam dando lugar aos desejos dos outros, principalmente, no caso dos jovens, daqueles pertencentes aos pais e técnicos.



Entretanto, o jovem, por sua vez, deve sentir-se aceito mas nunca forçado ou obrigado. Deve sentir prazer e nunca obrigação de pertencer a um grupo esportivo. Estar imerso em uma prática que possibilite a realização de seus desejos, de uma prática cujo fim não está em si mesma; pois, ao não se colocar o sujeito como centro da prática pedagógica do esporte infantil, perde-se a noção de que todo aluno ou atleta tem algo que lhe é particular. Ao se pensar numa prática pedagógica, em que se quer promover a construção do saber esportivo pelo próprio aluno/atleta, é preciso que se perceba que o sujeito, a criança, está em outro lugar, distinto de tudo que se escreve e fala sobre ele. É preciso dar-lhe a palavra, o espaço para que o atleta diga quem é e porque quer jogar de uma forma não de outra. Enfim, dar-lhe a possibilidade de construção do seu próprio saber desportivo, a oportunidade do erro, à valorização de sua personalidade para, “tendo em vista a realização de uma educação perfeita, desenvolver o espírito crítico na inteligência do jovem” (Einstein, 1981, p.29).



Conclusão



Muitos profissionais ainda não se deram conta que se trabalha com o ser-humano, com a emoção das pessoas, suas esperanças, seus objetivos, sonhos e desejos. Não se pode esquecer, jamais, que antes de tudo, principalmente da vitória, está a educação dos jovens; e se “Freud acalentava o sonho de que a psicanálise pudesse ser um dia colocada a serviço da sociedade como um todo e, principalmente da Educação” (Kupfer, 1982, p.5). Por fim, do acontecimento da transmissão não é possível dar receitas; não há um método que se possa agora apresentar no sentido de garantir que todos aqueles que venham a utilizá-lo possam alcançar os resultados esperados. Não há aqui o que se possa a vir, de modo a apresentar neste final, uma norma, uma orientação para procedimentos a serem adotados em prática. A única conclusão que se pode apresentar neste momento é de que a transmissão produz um diferencial na forma como é nomeado aquele que ensina.



Referências Bibliográficas

EINSTEIN, A. Educação em vista de um pensamento livre. In EINSTEIN, A. Como vejo o mundo. 11 ed. Trad. H. P. de Andrade. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1981. 29-30.

GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. 2 ed. Trad. de C. N. Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

KUPFER, M.C. Relação professor aluno: uma leitura psicanalítica. Dissertação: IP/USP, 1982.

LACAN, J. A transferência no presente. In: O Seminário: a transferência 1960-61. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992 (O Campo Freudiano no Brasil).

LEITE, M.P.S. Psicanálise lacaniana: cinco seminários para analistas kleinianos. São Paulo: Iluminuras, 2000 (Leituras Psicanalíticas).

LOPES, E.M.T. Da sagrada missão pedagógica. In LOPES, E. M. T. A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. 37-70.

MARQUES, A. Carta ao meu treinador. Revista Treino Desportivo, out, 2000. 36-39.

MENDONÇA FILHO, J.B. Ensinar: do mal-entendido ao inesperado da transmissão. In LOPES, E. M. T. A psicanálise escuta a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. 71-106.

MRECH, L.M. Psicanálise e educação: novos operadores de leitura. São Paulo: Pioneira, 1999.

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