Aspectos relevantes sobre o tratamento jurídico conferido à pessoa com deficiência no Brasil
Aspectos relevantes sobre o tratamento jurídico conferido à pessoa com deficiência no Brasil
por Marselha Silvério de Assis
Resumo: O presente estudo cuida de aspectos relevantes sobre o tratamento jurídico conferido à pessoa com deficiência no Brasil. Partindo de seu conceito, promove uma abordagem sistematizada dos traços constitucionais e legais sobre a matéria, e sua compatibilização ao sistema jurídico internacional. Além disso, discorre sobre o papel do MPT na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, em especial ao trabalho.
Classificação da área do Direito: Direito Constitucional e do Trabalho
Palavras-chaves: Pessoa com deficiência, ações afirmativas, discriminação positiva, MPT, direito ao trabalho.
1 Introdução
Toda sociedade que se diz democrática é pluralista, constituindo a pluralidade um dos pilares sobre os quais aquela se assenta.
E com o Brasil não poderia ser diferente, uma vez que a diferença se verifica aos quatro cantos do país, seja na língua, seja na cor, seja na raça, na ideologia, na religião, entre outros.
Pois bem. O presente estudo tem como objetivo, no âmbito do Direito Constitucional e do Trabalho, dissertar e analisar o tratamento jurídico dado às pessoas com deficiência, grupo vulnerável e amplo que tem sido historicamente excluído e discriminado nas relações sociais. Sua importância encontra-se delineada na necessidade de difundir as peculiaridades que permeiam o tratamento jurídico que é dado a tais pessoas, o porquê dele, bem como revelar o papel fundamental do Ministério Público do Trabalho na construção do respeito à diversidade. Ainda, a atualidade e a relevância do tema em questão, inseridos no contexto sócio-econômico do Brasil, bem como o aperfeiçoamento profissional que o estudo do assunto proporciona, demonstram a importância da presente pesquisa.
Para tanto, empregou-se como técnica de pesquisa a documentação indireta, tendo como base levantamentos bibliográficos, análise da Constituição e legislação pátria, além de pesquisa nos documentos internacionais que cuidam da proteção à pessoa com deficiência.
2 Conceito de pessoa com deficiência
Segundo o magistério de Piovesan (2010, p. 223/224),
A história da construção dos direitos humanos das pessoas com deficiência compreende quatro fases: a) uma fase de intolerância em relação às pessoas com deficiência, em que a deficiência simbolizava impureza, ou mesmo castigo divino, b) uma fase marcada pela invisibilidade das pessoas com deficiência, c) uma terceira fase orientada por uma ótica assistencialista, pautada na perspectiva médica e biológica de que a deficiência era uma “doença a ser curada”, sendo o foco centrado no indivíduo “portador da enfermidade”, e d) finalmente uma quarta fase orientada pelo paradigma dos direitos humanos, em que emergem os direitos à inclusão social, com ênfase na relação da pessoa com deficiência e do meio em que ela se insere, bem como na necessidade de eliminar obstáculos e barreiras superáveis, sejam elas culturais, físicas ou sociais, que impeçam o pleno exercício dos direitos humanos.
Paralelamente à evolução dos direitos humanos da pessoa com deficiência, o conceito desta foi se modificando para atender aos anseios de considerá-la sujeito de direitos. No Brasil, quem primeiro tratou da definição de pessoa com deficiência foi o art. 3º do Decreto nº 3.298/1999, que dispõe sobre a política nacional de sua integração e consolida normas de sua proteção, regulamentando a Lei nº 7.853/1989. Em que pese constituir um avanço no que tange ao acesso do deficiente à saúde, ao trabalho e à educação e à promoção de uma regulação da matéria, o conceito ali firmado não se pautou pela consagração da pessoa com deficiência como sujeito de direitos, isto é, pela consciência de que a deficiência pode ser superada pela existência de um ambiente externo adaptado.
Consoante ensina a doutrinadora Gugel (2007, Secretaria Especial de Direitos Humanos, p.29), melhor e revogadora daquela concepção é o conceito atribuído pelo Decreto nº 3.956, de 8.10.2001, que promulga a Convenção da Guatemala ou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, segundo o qual deficiência significa “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social”.
Destaque-se, de outro lado, que o Brasil ratificou e incorporou ao seu ordenamento jurídico a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, primeiro tratado internacional de direitos humanos que obedece ao rito do artigo 5º, §2º da CRFB/88 e que, por isso, tem status constitucional indiscutível. Naquele diploma normativo, foi reconhecido o direito das pessoas com deficiência de trabalhar, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, em trabalho de sua livre escolha, em ambiente inclusivo e acessível às suas limitações e, em outras palavras, ratifica o conceito de pessoa com deficiência estabelecida na Convenção da Guatemala.
O art. 1º da referida Convenção conceitua as pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.
3 Tratamento constitucional conferido à pessoa com deficiência
A CRFB/88 consagrou como um de seus princípios fundamentais, ao lado da valorização do trabalho, o pluralismo (art. 1º, incisos V e VI). Embora o constituinte tenha lhe agregado a expressão “político”, sua abrangência é muito maior, significando um direito fundamental à diferença em todos os âmbitos e expressões da convivência humana.
Além disso, dispôs que é objetivo fundamental da República a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, inciso III). Isso significa o império do pleno respeito à diversidade. É que a democracia não pode ser confundida com ditadura da maioria. Seu brilho está justamente em avaliar a opinião de todos, sem distinção, até mesmo quando a maioria não concorde.
A constitucionalização de um valor-norma que se atrela umbilicalmente à dignidade da pessoa humana, como é o pluralismo, aponta-nos um caminho delineado pelo constituinte sobre o tratamento dado à pessoa com deficiência, que faz parte dos chamados grupos vulneráveis, e por isso recebeu ampla tutela jurídica, com vários dispositivos ao longo da Constituição que tratam de seus direitos e da política de integração, rumo à igualdade substancial, de que são exemplos os arts. 7º, inciso XXXI, art. 203, incisos III, IV e V, art. 208, inciso III, art. 227, inciso II e parágrafo 2º, art. 224, entre outros.
O conceito de igualdade adotado pela CRFB/1988 não é o propugnado pelas correntes nominalista ou idealista, devendo ser o art. 5º, inciso I da CF lido dentro do sistema constitucional. Com a Constituição cidadã, o Brasil consagrou o entendimento da corrente realista, para quem a igualdade constitui dar tratamento igual aos iguais, e tratamento desigual aos desiguais, na medida de sua desigualdade, igualando-os em oportunidades, definição que foi inicialmente utilizada por Aristóteles e posteriormente retomada por Karl Marx.
Sob a ótica de Celso Mello (2009, p. 45), o conteúdo jurídico do princípio da igualdade envolve discriminações legais de pessoas, coisas, fatos e situações já que se admite existir traços diferenciais entre eles. Portanto, a correlação lógica entre o descrímen e a equiparação pretendida justifica a discriminação positiva em favor de minorias na medida em que estão contidas na própria ordem constitucional do Estado brasileiro. E aí se encontra o fundamento para a utilização de ações afirmativas/discriminação positiva pelos Poderes Públicos nas causas da pessoa com deficiência, e que tem se revelado um meio majestoso de sua proteção e promoção de suas potencialidades.
4 Ações afirmativas no panorama brasileiro
É com a linha de pensamento segundo a qual a pessoa com deficiência deve ter seus direitos assegurados e implementados, que a discriminação odiosa ou velada deve ser combatida e eliminada, seja com as ações afirmativas, seja com a repressão.
No âmbito de ação repressiva estatal, tem-se no Código Penal a criminalização da conduta injuriosa discriminatória, CP art. 140, §3º. A lei nº 11.340/2006, que determinou a inclusão do §11 no art. 129 do CP, e a Lei 9.455/1997, em seu art. 1º, §4º prevêem causa de aumento de pena caso a vítima dessa modalidade de crime seja pessoa com deficiência. E o art. 8º da Lei nº 7.853/1989 tipifica várias condutas discriminatórias à pessoa com deficiência
No entanto, a ação repressiva não é capaz de atingir a proteção geral dos bens jurídicos protegidos dos grupos vulneráveis e daí a necessidade de se conjugá-la com a ação afirmativa, que vem se tornado mais importante que aquela, em razão do alcance das políticas públicas institucionalizadas. A Ação afirmativa (terminologia do direito estadunidense) é um conjunto de medidas legais, modo de vida e políticas sociais que pretendem aliviar os tipos de discriminação que limitam oportunidades de determinados grupos sociais. As cotas, por exemplo, apresentam-se como forma de discriminação positiva, ou ação afirmativa, revelando-se como um dos meios de inserção do deficiente no mercado de trabalho.
É que, por constituir grupo vulnerável, além de suas limitações físicas/psicológicas, são alvo de um círculo vicioso que permeia suas vidas: por terem menos acesso à educação, são menos qualificados e, por isso, preteridos no mercado de trabalho, perpetuando sua situação de pobreza, estatisticamente demonstrada por Piovesan (2010, p. 223) ao dizer que “Organismos internacionais estimam haver no mundo aproximadamente 650 milhões de pessoas com deficiência, o que corresponde a 10% da população mundial. Na América Latina e no Caribe, estima-se que sejam ao menos 50 milhões de pessoas, 82% das quais vivendo na pobreza”.
Em decorrência do comando constitucional expresso no art. 37, inciso VII, na esfera federal pública, a discriminação positiva (terminologia consagrada na Europa) se encontra consagrada pela reserva de vagas em concursos públicos, art. 5º, parágrafo 2º da Lei nº8.112/1990, bem como no art. 37, §1º e 2º do Decreto nº 3.298/1999. Já no âmbito privado, a reserva de postos de trabalho em empresas com mais de 100 empregados encontra-se disciplinada pelo art. 93 da Lei nº 8.213/1991.
As ações afirmativas e a discriminação positiva temporária, ou permanente, auxiliam não somente a ampliação das oportunidades iguais e a promoção da inclusão social mas, acima de tudo, ajudam a criar uma sociedade mais justa e democrática. Nesse mesmo sentido, a recente Lei nº 11.78872008 previu a reserva de 10% das vagas oferecidas para pessoas com deficiência.
O Decreto nº 3.298/1999, com base na determinação conferida pela Lei nº 7.853/89, previu a organização de oficinas e congêneres destinadas á integração da pessoa com deficiência ao mercado de trabalho. No art. 34 do referido Decreto, tem-se as modalidades de sua colocação, que podem se dar no caso de deficiência grave ou severa, por meio do sistema cooperativado; na forma de colocação competitiva; e na forma de colocação seletiva. Nas duas últimas, tem-se a participação de entidades beneficentes de assistência social que, por meio da intermediação, poderão contratar a pessoa com deficiência para a prestação de serviços em entidades pública ou privada; ou na comercialização de bens e serviços decorrentes de programas de habilitação profissional de adolescente e adulto com deficiência em oficina protegida de proteção terapêutica.
Ainda, como forma de promoção de sua inserção no mercado de trabalho, a Lei nº 11.180/2005 alterou o art. 428 da CLT, para prever a não aplicação do limite de idade (24 anos) para a pessoa com deficiência em aprendizagem, e a desnecessidade de comprovação de escolaridade de aprendiz com deficiência mental, devendo nesses casos serem consideradas as habilidades e competências relacionadas com a profissionalização.
5 O Ministério Público do Trabalho e sua atuação na garantia do Direito ao trabalho da pessoa com deficiência
O Ministério Público do Trabalho poderá atuar na apuração de denúncias acerca de irregularidades a respeito da inserção do deficiente no mercado de trabalho ou de discriminação contra ele realizada, por meio da instauração de inquérito civil público, conforme autorização conferida pelos art. 83 da Lei Complementar nº 75/1993 e art. 6º da Lei nº 7.853/1989, podendo firmar termo de compromisso de ajustamento de conduta, art. 5º, §6º da LACP, ato jurídico pelo qual a pessoa, reconhecendo implicitamente que sua conduta ofende interesse difuso ou coletivo, assume o compromisso de eliminar a ofensa através da adequação de seu comportamento às exigências legais.
A legitimação do MPT para ajuizar as ações civis públicas que visem à proteção dos interesses coletivos ou difusos das pessoas com deficiência está consagrada nos arts. 127, 129, inciso III, da CF e art. 3º caput e 5º da Lei nº 7.853/1989 e art. 1º da LACP; mas sua atuação pode se dar também como órgão interveniente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas.
O Ministério Público do Trabalho tem papel fundamental no combate à discriminação da pessoa com deficiência, bem como na sua inserção no mercado de trabalho, constituindo frentes de sua atuação destacadas pela COORDIGUALDADE, Coordenadoria criada em 2002 e responsável por definir estratégias coordenadas e integradas de política de atuação institucional, em consonância com o princípio da unidade, respeitada a independência funcional, no combate á exclusão social e à discriminação no trabalho, fomentando troca de experiências e discussões a respeito do tema.
São exemplos de suas estratégias prioritárias de atuação a exigência da implementação das condições de acesso das pessoas com deficiência e pessoas reabilitadas ao local de trabalho, encarnada por meio da orientação nº13, bem como o entendimento segundo o qual na elaboração dos termos de ajuste de conduta que versem sobre o cumprimento do artigo 93 da Lei nº 8.213/1991, deverá ser considerado o número total de empregados da empresa, não devendo ser incluída cláusula que excepcione qualquer função ou atividade, consubstanciado na orientação nº6.
Mas, consoante o ensinamento de Leite (2010, p. 128), sua atuação pode ir mais além, consistente no seu papel de articulador social, promovendo audiências públicas e expedir recomendações a respeito, realização de palestras, workshops, visando a defender, de forma mediata, o cumprimento efetivo da ordem jurídica, na medida em que incentiva e orienta os setores governamentais e não governamentais na execução de políticas públicas de elevado interesse social.
Enfim, cabe ao Ministério Público do Trabalho exercer uma atuação firme e decidida para prevalência dessas normas que garantem os direitos das pessoas com deficiência. Afinal, a luta dos deficientes não é apenas destas pessoas, é de toda a sociedade.
6 Conclusão
As pessoas com deficiência constituem grupo vulnerável que recebeu especial atenção do Constituinte de 1988, a fim de que suas limitações não fossem consideradas obstáculos ao gozo de seus direitos de cidadania. E essa postura do Brasil compatibiliza-se com o cenário internacional que, como se observou no presente trabalho, encara a pessoa com deficiência como sujeito de direitos e cujas limitações são tão maiores quanto a inadaptação do ambiente em que vivem.
Daí a importância das políticas públicas de ações afirmativas, a fim de promover a igualdade substancial preconizada pelo Texto Maior, que no Brasil vêm ganhando ares de política nacional de integração das pessoas com deficiência, em todos os aspectos de suas vidas.
Nesse contexto, o papel do Ministério Público do Trabalho, como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, revela-se primordial na defesa dos direitos das pessoas com deficiência e, por conseqüência, na construção da democracia.
Por fim, é preciso revelar que, embora as disposições da Constituição de 1988, reforçadas, em agosto de 2008, pela Emenda Constitucional que abriga a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, bem como todo o arcabouço jurídico protetor instalado em favor dela é insuficiente na efetivação do respeito ao pluralismo. Necessário se faz uma mudança de consciência social, a fim de que o anseio de uma sociedade livre, justa e solidária realmente se efetive.
7 Referências bibliográficas
GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com deficiência e o direito ao trabalho: reserva de cargos em empresas, emprego apoiado. 1 ed. Florianópolis: Obra Jurídica, 2007.
GUGEL, Maria Aparecida. Pessoas com deficiência e o direito ao concurso público: reserva de cargos e empregos públicos, Administração Direta e Indireta. 2 ed. rev. Brasília, Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Ministério Público do Trabalho: doutrina, jurisprudência e prática. 4 ed. São Paulo: LTR, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3 ed. 17ª tiragem. São Paulo: Malheiros, 2009.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010.
FONTE - http://jusvi.com/artigos/43930
Nenhum comentário:
Postar um comentário