domingo, 15 de novembro de 2009

DEFICIENTES VISUAIS E O ACESSO À INFORMAÇÃO: QUANDO PARCERIA FUNCIONA

DEFICIENTES VISUAIS E O ACESSO À INFORMAÇÃO: QUANDO A PARCERIA FUNCIONA

Leonardo Fernandes Souto - UNICAMP/Biblioteca Central
Rosemar Rosa - Universidade de Uberaba

Sendo o acesso à informação um dos direitos básicos de todo cidadão, a Universidade de Uberaba (UNIUBE), na tentativa de garantir aos alunos deficientes visuais o exercício pleno desse direito, implantou, no ano 2000, em sua biblioteca central o Setor Braille. Tal iniciativa possibilitou aos usuários deficientes visuais uma maior facilidade na recuperação das informações buscadas. Este trabalho, relata justamente tal experiência cujo objetivo maior foi propiciar aos alunos deficientes visuais condições de acesso às informações, com a finalidade de torná-los tão bem informados quanto qualquer outro usuário e, ainda, oferecer aos alunos do curso de Pedagogia Especial um espaço de estudo e interação com tal segmento da sociedade.

1 Introdução

Poucos são os indivíduos portadores de alguma deficiência que conseguem superar as grandes barreiras, tais como: preconceito, descriminação e o descaso social, e conseguir a oportunidade de fazer um curso superior. Diante do reduzido número de universitários com deficiência visual (cegos, portadores de visão subnormal), os administradores das instituições de ensino superior, geralmente, não se preocupam em desenvolver projetos voltados para a integração desses estudantes aos diversos serviços disponibilizados para a universidade como um todo.
Sendo a educação um direito de todo cidadão e levando-se em conta a existência de um segmento social - os deficientes visuais - muitas vezes esquecido/ignorado, consideramos que há a necessidade de se desenvolver serviços que busquem oferecer as mesmas condições de aprendizagem, no ambiente universitário, para as pessoas portadoras dessa deficiência.
Para nós, a necessidade de tais serviços chega a ser uma questão de ética e cidadania. Segundo Silveira (2000) a Ciência da Informação “pode atuar na construção da cidadania, por meio dos estudos das necessidades informacionais, dos processos de interação e dos sistemas de informação.”.
Ao permitir, ao deficiente visual, condições de igualdade em sua formação intelectual, em relação ao acesso à informação, podemos considerar que estamos contribuindo para seu reconhecimento enquanto cidadão.

É, pois, através do conhecimento do mundo, adquirido, formal e informalmente, a partir de suas experiências e do convívio em sociedade, pelas trocas lingüísticas e reconhecimento de símbolos, em um processo sistemático de formação intelectual e moral do indivíduo, que se processa a construção de sua dimensão enquanto cidadão. (ROCHA, 2000).

Assim, consideramos oportuno o relato de nossa experiência ao implantar o Setor Braille, na Biblioteca Central da Universidade de Uberaba. Por ser um projeto composto por duas distintas classes de profissionais – bibliotecários e profissionais da área de Pedagogia Especial – o espaço constitui-se, também, como um “laboratório” para os alunos do curso de Pedagogia Especial que participam desenvolvendo algumas atividades como gravação de livros falados, organização do espaço físico e auxílio no tratamento dos materiais. Tal projeto permitiu aos alunos portadores de deficiência visual a possibilidade de fazerem uso dos vários serviços disponibilizados para a comunidade acadêmica desta universidade, democratizando o acesso à informação e colaborando no processo de aprendizagem.
O objetivo deste paper é, portanto, registrar a iniciativa de implantação de um Setor Braille, em uma biblioteca universitária particular, tendo como destaque o uso da parceria como garantia da viabilidade de sua implementação.

2 Histórico

A história da Universidade de Uberaba remonta à década de 1940, quando o escritor Mário Palmério fundou em Uberaba o Lyceu do Triângulo Mineiro, que funcionava em um prédio situado na R. Cel. Manoel Borges. Depois o estabelecimento passou a se chamar Colégio do Triângulo Mineiro, oferecendo formação direcionada para as áreas Exatas, Biológicas e Humanas. Em seguida, ele criou a Escola Técnica de Comércio do Triângulo Mineiro, passo decisivo para um projeto mais ousado: ensino superior, uma proposta transformada em realidade sete anos após a fundação do Lyceu do Triângulo Mineiro.
A trajetória universitária teve início em 1947, com a criação da Faculdade de Odontologia do Triângulo Mineiro. Mais tarde vieram as Faculdades de Direito e de Engenharia, novos cursos, as faculdades Integradas de Uberaba, a fusão com a Fista – Faculdades Integradas “Santo Thomás de Aquino” e, finalmente, em 1998 o reconhecimento como universidade de Uberaba.
Hoje, a Instituição oferece 31 cursos de graduação, nas áreas de Ciências Exatas , Ciências Agrárias, Ciências Biológicas e da Saúde, Engenharias e Humanidades. São mais de 50 anos dedicados à educação, à formação profissional e humana dos seus alunos.
Em julho de 2000, deu-se início à implantação do Setor Braille na Biblioteca Central da Universidade de Uberaba, possibilitando aos usuários deficientes visuais e aos que tenham interesse e necessidade do sistema (Braille), acessibilidade e facilidade na recuperação das informações buscadas, em livros Braille, livros falados, revistas em Braille e outros.
A universidade possui, aproximadamente, um total de 8.500 alunos e 1500 funcionários, onde três alunos são portadores de deficiência visual.

3 Recursos envolvidos: a parceria como a solução para a captação de recursos

Como muitos dos projetos de caráter social/cultural/pedagógico, a implantação de um Setor Braille, em uma biblioteca, gera alguns questionamentos e posturas contrárias, principalmente, quando o mesmo é para ser implementado dentro de um ambiente acadêmico não mantido por verba pública.
Os questionamentos colocam em evidência os mais diversos pontos: Qual a finalidade do setor? ; Quais serão os usuários beneficiados? ; Quais os gastos com os quais a universidade terá que arcar? ; Quais/quantos profissionais serão necessários? ; Qual o espaço a ser destinado para o setor? ; e muitos outros que ainda podem surgir dependendo do contexto/ambiente.
Dessa maneira, é recomendável que os responsáveis pelo projeto, durante sua elaboração, fundamentem-se de forma consistente, em relação aos possíveis questionamentos, de modo a antecipar situações que possam colocar em risco seu andamento, ou, até mesmo, sua aprovação.
No caso desta experiência, aqui relatada, o ponto forte para a aprovação do projeto foi a busca de parcerias, o que “seduziu” a administração da universidade.
Kawasaki (1997) ao refletir sobre a necessidade de parcerias entre universidades públicas e a sociedade considera que “os indicadores, rumo ao cenário desejável, apontam para a necessidade das universidades desenvolverem projetos integrados de pesquisa e educação que atendam às áreas de indiscutível relevância social e econômica...”. Em nossa concepção, a necessidade de parcerias extrapola o limite das universidades públicas e faz-se presente também nas universidades particulares.
Apesar dos questionamentos, anteriormente identificados, o projeto foi aprovado e implantado. Apresentamos, a seguir, os diferentes recursos que fizeram parte do projeto e sua origem:

Recursos humanos: a equipe foi composta de 3 bibliotecários, 2 professoras de Pedagogia Especial e um estagiário de Biblioteconomia (deficiente visual), aluno do último ano do curso – o mesmo já trabalhava no Setor Braille da Biblioteca Municipal de Betim e foi convidado a fazer parte da equipe.

Recursos físicos e materiais: o Setor Braille foi alojado nas dependências da Biblioteca Central da Universidade de Uberaba (duas cabines de leitura foram destinadas para uso exclusivo dos deficientes visuais, uma sala para o processamento técnico dos materiais, e o acervo foi alocado em uma posição estratégica – próximo às cabines). Muitos dos recursos materiais foram adquiridos por meio da solicitação de materiais não utilizados em outros setores da universidade (arquivos, mesas, estantes), outros materiais foram emprestados pelas professoras do curso de Pedagogia Especial (máquina de escrever em Braille, punção, reglete).

Recursos financeiros: a universidade ficou com a responsabilidade de arcar com as despesas do estagiário e dos materiais de consumo (papel de gramatura, fita da lombada, fitas cassete, etc). O acervo foi conseguido, por doação, através de parcerias estabelecidas com o Instituto Benjamin Constant, a Fundação Dorina Nowill e a Biblioteca Pública Municipal de Belo Horizonte – Luís de Bessa.

4 Produção/reprodução de documentos

Muitas são as dificuldades quando nos aventuramos a atuar com serviços direcionados para segmentos específicos da sociedade. Qualquer serviço especializado requer muito mais atenção, cuidado, dedicação e empenho do que serviços direcionados para grandes públicos.
Em relação a disponibilizar informações para deficientes visuais duas foram as principais dificuldades enfrentadas: primeiro a escassez de material disponível, e segundo, o alto custo para sua produção/reprodução. A saída para minimizar os efeitos destas dificuldades foi a parceria.
Como o Setor Braille, em implantação, também objetivava ser um “laboratório” para os alunos do curso de Pedagogia Especial a parte de produção/reprodução de material informacional ficou sob a responsabilidade das professoras do curso que supervisionavam/orientavam os alunos quanto a quais documentos produzir/reproduzir.
Desta maneira, as atividades de produção/reprodução eram assim desenvolvidas:

Produção: a equipe de professores era responsável pela produção, em código Braille ou suporte sonoro, do material didático utilizado como instrumento de ensino na sala de aula. Cópias deste material passavam a fazer parte do acervo do setor;


Reprodução: quando os materiais utilizados já existiam em algum outro suporte, os professores supervisionavam os alunos quanto à reprodução. Esta podia ser tanto em código Braille ou em fitas cassete. No caso da reprodução em fitas cassete os professores, ainda, orientavam os ledores quanto a alguns detalhes a serem observados: tonalidade, dicção, seqüenciamento e ritmo de leitura. Ainda, em relação à reprodução em suporte sonoro, a biblioteca conta com a reprodução de materiais, anteriormente, reproduzidos em fitas cassete.
De acordo com o planejamento, espera-se que, no futuro, a universidade adquira uma impressora Braille. Sem dúvida, tal equipamento agilizará, em grande escala, as atividades de produção/reprodução.

5 Tratamento da Informação

O tratamento técnico, do material em Braille e dos livros falados, segue o mesmo padrão dos materiais convencionais. Os documentos são tombados, classificados (CDD), catalogados (AACR-2), indexados, armazenados nas estantes e disponibilizados para consulta em meio digital (Microisis).
Mais uma vez a parceria faz-se presente. Como o tratamento técnico é de responsabilidade dos bibliotecários, e estes não dominam o código Braille, a interpretação/localização dos dados é feita por uma das professoras de Pedagogia Especial (deficiente visual e profunda conhecedora do código).
Foi elaborado um catálogo de fichas em Braille, no tamanho 12,5 x 7,5 cm, e seus dados correspondem a uma referência bibliográfica. Faz-se o desdobramento para título e assunto, pois a entrada das referências bibliográficas é pelo sobrenome do autor. O catálogo está disponível na seção de processamento técnico do Setor Braille.
Todos os documentos, em Braille ou suporte sonoro, possuem etiquetas com o número de chamada impresso e em Braille. Isso permite a identificação dos documentos tanto pelos deficientes visuais quanto por qualquer pessoa que não domine o código. As etiquetas em Braille são feitas em fita rotex e colocadas, estrategicamente, de modo a facilitar sua leitura.
Dessa maneira, é possível garantir a confiabilidade dos dados e a uniformização do tratamento técnico dos diferentes tipos de materiais que fazem parte do acervo da biblioteca.
6 Acesso à Informação: integração ao ambiente da biblioteca

É do reconhecimento da igualdade essencial de todas as pessoas do gênero humano que se nutriram todas as teses da cidadania e da democracia. Sem esse reconhecimento e respeito por ele, estão abertas portas e janelas para a entrada de todas as formas de racismo e correlatos de que o século XX deu trágicas provas. (CURY, 2002).

O acesso à informação foi uma das questões mais interessantes quando da implantação do projeto. Muito foi questionado e discutido em relação ao princípio de permitir a igualdade de acesso à informação, de modo a não caracterizar o deficiente visual como um usuário diferenciado e não isolá-lo do convívio com os demais usuários. Neste sentido, foram tomadas as seguintes decisões:

Duas cabines, dentro da biblioteca, foram destinadas para uso dos deficientes visuais. Estas cabines foram equipadas com sorobã, bengalas, pranchetas, regletes, punções (estes materiais foram doados pelo Ministério da Educação) e tomadas para o uso de micro-gravadores (uso dos livros falados);

A consulta ao acervo disponível pode ocorrer por meio de dois recursos: primeiramente, pode consultar-se o sistema de pesquisa – que é o mesmo para todos os usuários – e identificar a existência ou não do documento procurado e em qual suporte ele se encontra (impresso, Braille, sonoro, áudio-visual). A consulta ao sistema ocorre por meio do software Virtual Vision. A segunda possibilidade é consultar o catálogo manual composto por fichas em Braille. Assim, é possível consultar quais os documentos, em Braille ou em suporte sonoro, a biblioteca possui;

Os livros em Braille são armazenados nas estantes próximas às cabines para facilitar a consulta. Diante de sua relativa fragilidade, os livros falados são armazenados, internamente, na sala de processamento técnico do Setor Braille como uma medida de prevenção para a garantia de sua preservação;

Em determinadas situações, dependendo da necessidade do usuário, quando o documento de interesse não está disponível em Braille ou em suporte sonoro é possível a disponibilização de um ledor que ficará à disposição para fazer a leitura do documento. Esta atividade, geralmente, é desenvolvida por um dos alunos do curso de graduação em Pedagogia Especial.

7 O Setor Braille hoje

Hoje o Setor Braille possui 186 documentos sendo 175 livros em Braille, 06 livros falados disponíveis em 100 fitas, e 05 revistas. Apesar do setor realizar empréstimo domiciliar ele é mais utilizado para consulta local. São duas cabines disponíveis para os usuários realizarem pesquisa ou leitura.
A utilização do setor também é feita pelos alunos de pedagogia especial, que com orientação do professor, uma ou duas vezes na semana têm aula no local. Os graduandos são responsáveis pela atualização e enriquecimento do acervo ajudando na gravação dos livros, ou ditando-os para a transcrição em Braille.
O setor Braille aos poucos está crescendo e ocupando o espaço desejado dentro da Universidade de Uberaba. Hoje a divulgação e a motivação em utilizar o setor são realizadas com mais ênfase, visto que os serviços estão sendo solicitados e há uma grande contribuição para os alunos que se interessam e necessitam deste tipo de informação.
A Universidade está com uma visão aberta para o futuro e só tende a oferecer melhorias nas condições de atendimento aos usuários com deficiência visual, tratando-os de igual para igual, inserindo-os formalmente como uma clientela especializada.

8 Considerações finais

Apesar de ser um setor em desenvolvimento, consideramos que o retorno do empenho destinado à implantação do Setor Braille está na possibilidade de a Biblioteca Central da Universidade de Uberaba contar com um espaço de acesso à informação, destinado aos deficientes visuais e, ao mesmo tempo, oferecer aos alunos de Pedagogia Especial a oportunidade de conhecer/compreender o Código Braille de modo a entenderem não apenas sua relação simbólica, mas também sua aplicação com fins sociais, educacionais e culturais.
A cada dia que se passa o número de portadores de deficiência aumenta nas universidades, neste contexto, é preciso preparar e estruturar não somente para hoje, mas sim para um futuro onde a exclusão possa ser mera teoria e não prática. A Universidade de Uberaba começa a dar os primeiros passos para que este fim seja alcançado não somente dentro do ambiente acadêmico, mas sim dentro do contexto da sociedade.

A educação é reconhecida, pela maior parte dos autores que tratam da cidadania, como um direito essencial enquanto propiciador das condições necessárias à inclusão no espaço público, ou seja, no campo da participação política. O direito ao acesso à educação para todos os cidadãos traduz a afirmação de um bem comum à comunidade política e ao compartilhamento, por parte de seus membros, do conhecimento como um valor. Porém, a inexistência da possibilidade de realização do direito à educação, ou a insuficiência de condições para o seu exercício, implica também que a igualdade de direitos e deveres de cidadania está anulada ou prejudicada. (RIBEIRO, 2002).


Há novos projetos para a dinamização e ampliação do setor, de modo a permitir a interação da universidade com a comunidade. O grande objetivo agora é sair do ambiente acadêmico/universitário e atender a comunidade num todo. Mas tendo em vista o custo de recursos humanos e financeiros os projetos terão que passar por uma aprovação.
Finalizando, acreditamos que as bibliotecas universitárias precisam estar atentas aos diferentes grupos de usuários, que fazem uso de seus serviços, buscando identificar suas necessidades específicas de informação e, ainda, é importante que elas direcionem esforços no desenvolvimento de serviços que atendam às demandas informacionais de tais grupos.


9 Referências

CURY, Carlos Roberto Jamil. Direito à educação: direito à igualdade, direito à diferença. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 116, p. 245-262, jul. 2002.
KAWASAKI, Clarice Sumi. Universidades públicas e sociedade: uma parceria necessária. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 23, n.1-2, jan./dez. 1997.
RIBEIRO, Marlene. Educação para a cidadania: questão colocada pelos movimentos sociais. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 113-128, jul./dez. 2002.
ROCHA, Marisa Perrone Campos. A questão cidadania na sociedade da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 1, p. 40-45, jan./abr. 2000.
SILVEIRA, Henrique Flávio Rodrigues da. Um estudo do poder na sociedade da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 3, p. 79-90, set./dez. 2000.

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