sexta-feira, 4 de junho de 2010

Trancados no próprio mundo












O dia-a-dia de Rodrigo Rodrigo faz movimentos repetidos ao brincar com objetos como as letrinhas (abaixo). Sem razão aparente, fica irritadiço. A babá tenta ajudá-lo mas ele passa a morder as próprias mãos










Carinho para tratar Márcia, måe de Rodrigo, 9 anos, espirrou extrato de boldo na boca do filho para conter sua agressividade, a conselho da Associação dos Amigos do Autista (AMA) de Ribeirão Preto: "Isso só prejudicou meu filho"


Investigado pelo Ministério Público, um episódio de maus tratos numa escola especial em Ribeirão Preto chama a atenção para o drama dos autistas, vítimas do desconhecimento médico e da negligência do Estado

Fábio Farah

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Carinho para tratar Márcia, måe de Rodrigo, 9 anos, espirrou extrato de boldo na boca do filho para conter sua agressividade, a conselho da Associação dos Amigos do Autista (AMA) de Ribeirão Preto: "Isso só prejudicou meu filho"
Rodrigo Francisco Órbes é um menino de nove anos que gosta de correr em gramados amplos. Quem o vê de relance não o distingue de outras crianças da sua idade. Mas Rodrigo é diferente. Ele é autista. Vive trancado em seu próprio mundo. Não fala, vez por outra anda de um lado para o outro e faz movimentos intermitentes com as mãos. Quando escuta a frase "dá um beijo na mamãe", Rodrigo não pula de imediato no pescoço da professora universitária Márcia de Lourdes Francisco, como filhos pequenos costumam reagir a esse pedido. Depois de a mãe sinalizar várias vezes a mão nos lábios e em seguida na face, ele encosta seus lábios no rosto dela. O gesto de Rodrigo pode não ser exatamente um beijo, mas sela a troca de carinho entre mãe e filho. E o sorriso maternal é a prova disso.

Diferente de Rodrigo, Luana Felício, 14, comunica-se por repetição. Seu pai, o engenheiro Donato de Felício, 43, chama a filha para o quintal de casa, em Ribeirão Preto (SP): "Luana, faz carinho no passarinho", o pai diz. A filha, alfabetizada pela mãe, toca a gaiola e repete: "Luana faz carinho no passarinho".

Luana também é portadora do estado mental definido em 1943 por Lao Kanner como distúrbio de desenvolvimento - permanente e incapacitante - e que atinge, na estimativa mais conservadora, cerca de 65 mil pessoas no Brasil. Numa recente reportagem de capa, a revista Time diz que, nos últimos anos, os casos de autismo têm se intensificado e alcançam hoje mais de um milhão de americanos.

Tanto Rodrigo quanto Luana freqüentavam a Associação de Amigos do Autista (AMA) de Ribeirão Preto. Lá aprendiam a reagir a estímulos a partir de terapia comportamental aliada ao método por associação de imagem Teacch - Treatment and Education for Autistic and Related Communication Handicapped Children -, o mais indicado internacionalmente para autismo. Há um mês, contudo, a mãe de Luana, Rosa Maria de Miguel, formalizou denúncia ao Ministério Público de que a entidade responsável pelo atendimento de 45 autistas maltratava os alunos.

Ela soube por uma terapeuta da associação que a "nova estratégia" era espirrar extrato de boldo na boca de sua filha. A idéia é que o amargo do boldo leva a criança a parar de gritar. "Vocês não tinham autorização para fazer isso", disse a mãe, no dia seguinte, à psicopedagoga Camila Góes Sampaio do Amaral, coordenadora técnica da AMA. A
decisão de tirar Luana da escola veio após ela receber comunicado sugerindo confinamento da menina no banheiro toda vez que ela gritasse. "Eles não podem ser punidos porque não entendem isso. Devem ser elogiados", diz Rosa. Márcia, mãe de Rodrigo, autorizou o método com boldo, repetiu em casa e hoje se arrepende: "Meu filho tentava
se proteger com as mãos sempre que eu lhe fazia um afago. E começou a se automutilar. Só prejudicaram meu filho". O promotor público Carlos Cezar Barbosa, responsável pelo caso, afirma que os métodos são incompatíveis com a lei
de proteção aos deficientes. "A imposição do sofrimento
deve ser abolida", diz.

No Brasil, há 32 associações de pais nos moldes da AMA de Ribeirão Preto, com diretorias e metodologias de trabalho distintas. Essas entidades são o único respaldo para familiares de autistas no Brasil. Nem o Ministério da Saúde nem o Conselho Nacional de Deficientes (Conade) - vinculado ao Ministério da Justiça - regulam o tratamento dos portadores do autismo. "Não há padronização no tratamento de autistas no País, o que dá margem ao uso de métodos inadequados, como o caso do boldo", diz o psiquiatra infantil Raymond Rosenberg, idealizador da pioneira AMA de São Paulo. "Métodos aversivos são proibidos nos Estados Unidos. O Ministério da Saúde deveria fiscalizar as associações de pais que cuidam dos autistas, mas se omite. O bem-estar dessas crianças deveria ser uma das prerrogativas." A psicóloga comportamental Meca C. Andrade, analista de comportamento da The New England Center for Children, centro de tratamento para autistas em Massachusets, reforça o alerta do médico. "Trabalho com crianças que podem descolar a própria retina e ainda assim não uso e não sou autorizada a usar nenhum tipo de tratamento aversivo físico", diz a especialista, supervisora de equipe de tratamento intensivo para crianças autistas com comportamento agressivo. "Isso foi banido na maior parte dos Estados americanos. Em Massachusetts é proibido." Em casos de agressividade extrema, a prática correta é conter a criança para que não se machuque.

A AMA de Ribeirão Preto atende autistas de cinco a 30 anos, divididos em salas de acordo com o grau de deficiência (há vários níveis de autismo). "O boldo é uma estratégia aversiva usada como último recurso para reverter um comportamento inadequado, como gritar compulsivamente", diz Cristina Verdi, coordenadora-geral da AMA da cidade e mãe de Leonardo,
14 anos, autista, aluno da escola há sete. Ela detalha que em junho a associação começou a testar a estratégia em três alunos e entrar em contato com as famílias. "Experimentamos em Luana para verificar se era aversivo. Dava resultado porque ela parava de gritar", diz Cristina. "A mãe ficou indignada simplesmente porque tínhamos feito o teste. É um direito dela." Desde a denúncia, a entidade deixou de usar o método com o boldo. "A gente fica batendo a cabeça e pensando de que forma pode ajudar. Muitas vezes me sinto impotente", desabafa a coordenadora, apoiada por algumas mães. Uma delas é Isaura de Carlos Barbosa, 59 anos. Para ela, AMA fez bem ao seu filho, Fernando. "Antes ele não sabia nem usar o banheiro.
Agora toma até banho sozinho", diz.

continuação


Ana Maria Mello, a mulher que fundou a primeira Associação de Amigos do Autista, a AMA São Paulo, sabe que o problema do autismo no Brasil é muito maior do que o que aconteceu em Ribeirão Preto. O problema chama-se desamparo. "Eles não estavam preparados para lidar com autistas em algumas circunstâncias e para ajudar tentaram algo inadequado. Isso acontece", defende ela, que é mãe de Guilherme, 23, o caçula de seus quatro filhos. "Vamos conversar com as autoridades e eles fingem que você não existe. E, quando tem um problema, cai todo mundo matando em cima." Engenheira naval, ela abandonou o emprego para se dedicar ao filho. Hoje a AMA-SP tem 85 alunos. "Quando Guilherme tinha 15 dias as pessoas diziam que seu olhar era estranho. Também percebia", conta. O diagnóstico veio quando ele tinha três anos. "Perguntei para o médico: E agora, o que eu faço?" O médico lhe disse que no Brasil não havia associação de autistas, mas a chamou para uma reunião com outros pais. A AMA-SP, que já foi premiada pela Unesco, foi criada 19 anos atrás por um grupo que se organizou a partir dessa primeira reunião. Hoje, mesmo com dificuldades de verbas, seus profissionais freqüentam congressos internacionais, estão atualizados e qualificados para lidar com o problema. "São 19 anos de muito sofrimento", diz.

A nome AMA foi emprestado às outras, mas elas não têm vínculo formal entre si. O lema é: cada um faz o que pode, sem amparo da saúde pública. "O autismo é muito desconhecido. É deficiência ou doença? Por esse desconhecimento, não há política clara de atendimento", admite Niuzarete Margarida de Lima, coordenadora da Corde (Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência).

O diagnóstico do autismo é pela observação do comportamento da criança. Acredita-se que a explosão dos casos nos Estados Unidos seja resultado da atenção maior aos sintomas iniciais e ao diagnóstico mais apurado. Há estudos americanos com dados demográficos que sugerem que a vacina tríplice poderia estar relacionada ao desenvolvimento do autismo. "Não há nenhuma evidência médica ou sequer uma hipótese razoável. São dados demográficos baseados em correlações", rechaça a psicóloga Meca Andrade, do centro de Massachusetts. A hipótese mais aceita é de que o autismo é uma condição de base neurológica provavelmente causada por fatores genéticos. Enquanto a medicina não tem respostas, famílias constróem sozinhas um caminho que dê mais qualidade de vida ao mundo dos filhos.

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