sexta-feira, 25 de junho de 2010

Mais difícil do que o imaginado

“Era de ouro” da genética ainda está longe de entregar tudo o que prometeu

Leoleli Camargo, iG São Paulo | 25/06/2010 12:55
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Em um recente artigo publicado na revista Nature o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, Francis Collins, recorda que no anúncio da conclusão do sequenciamento do genoma humano fez suas próprias previsões para 2010.
Ao lado do cientista-empresário Craig Venter – que encabeçava o consórcio privado a estudar o mesmo tema – Collins apresentou ao então presidente Bill Clinton uma série de lâminas de PowerPoint na qual vaticinava: em uma década testes genéticos para apontar as chances de uma pessoa desenvolver uma ou mais doenças estarão disponíveis para uma dúzia de enfermidades e será possível reduzir o risco de desenvolver algumas delas com intervenções praticadas por médicos por meio da “medicina genética”.
Foto: Divulgação
Collins (à frente) e Venter no anúncio do sequenciamento completo do Genoma Humano, em 2006
Collins foi além. Acrescentou que o diagnóstico pré-implantacional – análise genética do bebê ainda na fase de embrião, antes mesmo de implantá-lo no útero da mãe – estaria disponível em uma escala ampla, e seus limites éticos seriam ferozmente debatidos.
O cientista terminava suas previsões dizendo que em 2010 a proibição do preconceito genético – discriminação de uma pessoa por conta de alguma característica genética que ela tenha – seria uma realidade nos Estados Unidos e o acesso à medicina genética continuaria a ser desigual, especialmente nos países em desenvolvimento.
Como o próprio Collins afirma no artigo, é justo dizer que praticamente todos os itens da lâmina apresentada na ocasião já são, com algumas ressalvas, realidade. Ainda assim, uma década depois de completa a primeira visão do genoma humano a ciência avança de forma sôfrega e por vezes errática no desenvolvimento de medicamentos e tratamentos baseados no conhecimento adquirido sobre os genes.
Longe da maioria
Embora já se disponha de testes genéticos preditivos para muitas doenças raras, causadas por mutações em um único gene, ainda não existem exames comprovadamente eficazes para apontar com precisão as chances de desenvolvimento das enfermidades crônicas que mais limitam e matam no planeta: doenças cardiovasculares, cânceres, diabetes, Alzheimer e Parkinson. Isso porque, sabe-se hoje, são doenças causadas por alterações em mais de um gene – talvez centenas deles – e os pesquisadores ainda não entenderam como se dá a interação entre o ambiente e essas sequencias de DNA que dizem às células o que fazer.
Da mesma forma, a polêmica possibilidade de analisar e selecionar o embrião que seguirá adiante na fertilização in vitro ainda é uma realidade muito distante da maior parte da população – a segregação começa pelos altos preços cobrados para se fazer um bebê de proveta – e a discriminação genética, por enquanto, é apenas objeto de divagações. Uma sombra negra em um futuro que a maioria dos humanos, de forma imprudente, nem ousa vislumbrar.
Alguns recentes avanços, entretanto, estão dando novo fôlego à esperança mundial de um planeta mais saudável – e limpo. No mês passado, Craig Venter e sua turma anunciaram a criação de uma bactéria criada a partir de um genoma artificial. O ser que vive com um DNA totalmente montado em laboratório poderá, no futuro, dar origem a combustíveis alternativos ou a formas de vida orgânicas passíveis de serem programadas para realizar trabalhos impossíveis de serem feitos por seres humanos.
Reprogramação celular
Na Medicina os avanços mais significativos estão concentrados em identificar genes que causam ou favorecem o surgimento de doenças. A partir desse conhecimento, já foi possível, por exemplo, silenciar a expressão de determinados genes com o intuito de tratar ou até mesmo evitar doenças.
Em março deste ano, uma equipe do Instituto de Tecnologia da Califórnia, nos Estados Unidos, conseguiu silenciar genes específicos ligados ao melanoma, a forma mais agressiva e letal de câncer de pele, usando nanopartículas para “entregar” no núcleo da célula sequências genéticas capazes de diminuir ou cessar completamente a expressão de um gene envolvido na doença. A técnica, batizada de RNA interferência (RNAi) rendeu a seus descobridores o prêmio Nobel de Medicina em 2006.
Foto: Divulgação
Pesquisa: poucos avanços práticos
Pouco mais de um mês depois do anúncio dos pesquisadores californianos, um grupo liderado pelo pediatra John De Vincenzo, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Tennessee anunciou o sucesso do uso da mesma técnica para prevenir uma doença humana, a infecção pelo vírus sincicial respiratório, um dos principais causadores de pneumonia e infecção das vias aéreas em crianças e adultos jovens. Outra área que vem recebendo grandes investimentos em pesquisa é a farmacogenômica, o estudo de como os medicamentos reagem em organismos com perfis genéticos diferentes. Hoje já existem testes capazes de prever como um indivíduo vai reagir à medicação que está recebendo. Com isso, se economiza recursos em saúde e principalmente tempo, um fator do qual a maior parte dos doentes não dispõe.
“Isso já foi feito com o câncer de mama. Para metade das mulheres que faziam uso de um remédio, o resultado era excelente. Para a outra, não tinha função nenhuma. Os médicos descobriram que isso acontecia por conta de uma alteração genética” explica o presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica, Salmo Raskin.
O teste citado pelo médico brasileiro foi desenvolvido pela empresa americana Genomic Health. Ele consegue dizer quais mulheres com câncer de mama irão se beneficiar da quimioterapia e quais precisam de outra abordagem de tratamento. E os avanços não param por aí. Uma equipe liderada pelo oncologista Bert Vogelstein, da Universidade Johns Hopkins de Baltimore, nos Estados Unidos, desenvolveu um exame de sangue personalizado que diz se o câncer do paciente voltou ou se espalhou pelo corpo.
“DNA lixo”
Boa parte da dificuldade dos cientistas em “entregar” o que foi prometido uma década atrás se deve a uma descoberta feita quando o mapeamento do genoma humano alcançou os 100%, em 2003. Na época, constatou-se que um ser humano tem cerca de 20.500 genes – trechos de DNA que, codificam algo, ou seja, dizem à célula qual proteína ela deve produzir. O resto, que corresponde a 98% do genoma humano, foi classificado pelos cientistas como DNA não-codificante ou “DNA lixo”.
Até pouco tempo atrás, pensava-se que o “DNA lixo” era apenas um amontoado de letras A, G , C e T que não dizia absolutamente nada. Essa ideia só começou a mudar a partir de 2006, quando grupos de pesquisa compararam o genoma de pessoas cujos genes eram 99% iguais e descobriram diferenças dramáticas no “DNA lixo” delas. Com essa comparação os cientistas descobriram o “DNA lixo” tem tanta importância na formação de um ser humano único quanto seus genes. Se compreender a interação dos já mapeados 22.500 genes humanos com o ambiente em que vivemos ainda é um grande desafio para a ciência, o que dizer de elucidar o papel dos 98% de “DNA lixo” no desenvolvimento de cada ser humano, e mais, no surgimento de doenças? É, a vida está ficando cada vez mais complicada.
 

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