sábado, 13 de julho de 2013

PARALIMPÍADAS X PARAOLIMPÍADAS

AINDA AS PARAOLIMPÍADAS

 É de amargar! Como num passe de mágica, a maior parte da imprensa brasileira perdeu o seu tradicional espírito crítico (juntamente com o bom-senso) e aderiu cegamente a esta malparida PARALIMPÍADA.        
 Confesso que não entendi essa aceitação pacífica — quase ovina, eu diria — com que a maior parte da imprensa brasileira engoliu uma aberração do calibre de "paralimpíada". Os meios de comunicação, sempre tão sensíveis (e críticos) a qualquer inovação vocabular — lembro, por exemplo, de quanta tinta se gastou para comentar oimexível do ministro Magri ou o sugerimento de Dunga, palavras, aliás, formadas dentro dos mais legítimos princípios do idioma —, desta vez aderiram imediatamente a esta malparida "paralimpíada" e ao não menos lamentável adjetivo "paralímpico". "Foi exigência do Comitê Nacional", dizem uns; "do Comitê Internacional", emendam outros — como se alguma instituição desportiva, política, religiosa, financeira, jurídica ou o que seja, desta ou de qualquer outra galáxia, tivesse o poder de determinar a forma das palavras que nossa língua produz ou deixa ingressar em seu léxico! Se, com muita boa vontade, equipararmos o nome de um comitê esportivo a uma marca registrada, podemos até admitir que ele seja grafado de acordo com a vontade ou fantasia do dono (ou dos dirigentes). No entanto, assim como as corporações que produzem a Gillette e o Band-Aid nada podem fazer se resolvemos criar, a partir de seus nomes, os substantivos gilete ebandeide, os referidos comitês não vão influir, com suas decisões privadas, na grafia de palavras como paraolimpíada  e paraolímpico, já de uso comum e assim registradas em todos os nossos bons dicionários.
A língua inglesa, de onde veio a novidade, tem lá suas desculpas por ter produzido essa aberração: segundo o Oxford English Dictionary — o incomparável OED —, o termo paralympic foi cunhado nos anos 50 a partir da união de pedaços dos vocábulos paraplegic e olympic, já que, em sua primeira edição, o evento era dirigido exclusivamente para quem sofria algum tipo de paralisia. Este tipo de fusão lexical (chamada tecnicamente de amálgama, mesclagem, palavras-valise, etc.), que junta o segmento inicial de uma palavra ao final de outra para formar uma terceira, é bastante produtivo no Inglês: smog(smoke+fog), bit (binary+digit), brunch (breakfast+lunch), fanzine(fan+magazine), freeware (free+software), entre dezenas de outras. Duas delas, inclusive, passaram a fazer parte de nosso vocabulário técnico: mecatrônica (mechanics+electronics) e estagflação(stagnation+inflation).
Em nossa língua, no entanto, esse é um processo exótico, usado principalmente por quem busca o efeito crítico ou jocoso que as palavras amalgamadas despertam: showmício, portunhol, brasiguaio,bebemorar, chafé (café muito diluído), namorido (é mais que um namorado, mas menos que um marido — vocábulo que, misteriosamente, ainda não tem o seu equivalente feminino...),onguessugas (usada para ONGs não muito honestas), chocólatra, etc. Os humoristas de primeira linha (no meu dicionário, aqueles que descobrem, para alegria geral, as pepitas de humor que se escondem no idioma) exploram bastante este veio. É o caso de barcilo, "bactéria encontrada num bar"; boicejo, "o tédio do marido da vaca";cartomente, "adivinha que nunca diz a verdade" (todas do Millôr Fernandes); ou de marmúrio, "barulho longínquo do mar"; zerossímil, "que não se parece com nada"; e triglodita, "muito, muito primitivo", do nosso Luís Fernando Verissimo. Como se vê, esse curioso processo de criação produz vocábulos efêmeros, apropriados para situações especiais, lúdicas ou literárias, mas não faz parte daquela "máquina de fazer palavras" que todos os falantes do Português usam desde pequeninos.
O interessante é que paralympics tornou-se discutível mesmo no Inglês, sua língua de origem:  como os jogos passaram a incluir portadores de outras deficiências, a ideia primitiva de paraplegicsdesapareceu, e o vocábulo passou a ser reanalisado comopara+olympics, onde o primeiro elemento é o prefixo de origem grega "para", que significa, entre outras coisas, "semelhante, paralelo" — o mesmo que encontramos em paramilitar, paradidático e paramédico, ideia também presente na paraolimpíada, que passou a ser um evento regular, paralelo e estreitamente relacionado à olimpíada.
Não me cabe criticar os ingleses por persistirem no uso da forma primitiva; afinal, eles têm uma rainha, dirigem do lado errado da estrada e devem ter lá os seus motivos para se conformar comparalympics — mas asseguro que aqui é diferente: não há como justificar, no Português, esta forma esquisita, que causa estranheza a todos os que entram em contato com ela. (continua)

Ainda as paraolimpíadas (conclusão)

Veja por que os esquisitíssimos *paralimpíada e *paralímpico jamais poderão conviver pacificamente com os demais vocábulos que compõem o nosso léxico.
Como deixei bem claro na coluna anterior, é impossível conviver com uma formação tão esdrúxula quanto a famigerada "paralimpíada", que não só contraria o que já foi consagrado pelo uso e pelos dicionários (Houaiss, Aulete e o próprio VOLP só registram paraolimpíada), como também viola princípios básicos do funcionamento da língua portuguesa. A criação lexical não vai parar nunca, enquanto o Português for uma língua viva, mas os vocábulos — tanto os que já existem como os que haverão de ser criados — nascem seguindo determinados parâmetros imutáveis, gravados, digamos assim, no DNA do idioma.
É possível que surja, de vez em quando, um vocábulo tecnicamente "malformado", mas ele só vai conviver em nosso meio se os falantes, de alguma maneira, nele enxergarem uma fisionomia conhecida. Um excelente exemplo é vestibulando: de alimentar, graduar, adotar eanalisar produzimos substantivos com a noção implícita de "aquele que deve fazer ou ser": o alimentando, o graduando, o adotando, oanalisando. Não seria descabido, portanto, afirmar que este sufixo serve para formar substantivos a partir de verbos da 1ª conjugação. Ora, os falantes aplicaram esta regra ao adjetivo vestibular (para entrar na universidade, prestamos um concurso vestibular — isto é, de ingresso) e geraram vestibulando, que decididamente não é "aquele que vai ou deve se vestibular". E daí? Por ser fruto de um acidente genético, não tem direito a viver? Quem vai decidir é o plebiscito silencioso do uso: cada vez que alguém o emprega, está votando por sua existência, e hoje, no Google, ele está batendo dois milhões e meio de ocorrências. Como meu mestre Luft dizia, em off (vocábulo tupi-guarani que até hoje conserva grande utilidade): "Palavra nova é como macarrão; atirou na parede e colou? Então essa não morre mais".
Infelizmente, "paralimpíada" não tem, como tem vestibulando, aquele rosto conhecido que a faria passar despercebida no meio das outras. Sua nota destoante —     o que realmente nos incomoda — é o desfiguramento do radical olímpico com a eliminação do "o" inicial, algo impensável no nosso sistema de formação de palavras. No Português, o radical não costuma perder fonemas, principalmente aqueles que o iniciam. Explico melhor: os radicais são os donos da casa, os prefixos são eventuais visitantes. Se, ao unirmos os dois, for necessário suprimir algum fonema vocálico, quem vai sofrer a amputação será — invariavelmente! — o prefixo. Por exemplo, ao formarmos vocábulos como para+estatal, para+esportista e para+esgrimista (estou usando o símbolo "+" apenas para assinalar o limite entre os dois componentes), o prefixo não perde fonema algum de sua configuração original. Nem sempre, porém, ele vai ter esta sorte: em par+encéfalo,par+estesia, par+odontia, sua vogal final foi suprimida para permitir uma ligação harmoniosa com o radical.  Repito: se alguém tem de ceder, não vai ser o radical, que precisa estar intacto para ser reconhecido.
Em certos casos, até, podem coexistir variantes que se distinguem apenas pelo maior ou menor grau de concatenação dos dois elementos (o que vem a ser, como o leitor já deve ter percebido, a velha diferença que se estabelecia entre a aglutinação e a justaposição): os dicionários nos permitem escolher entre termo+elétrica outerm+elétrica, hidro+avião ou hidr+avião — mas não podemos sequer imaginar formações em que a vogal final do prefixo seja preservada à custa do sacrifício da vogal inicial do radical. Vocábulos como *termo+létrica e *hidro-vião seriam tão absurdos quanto seriam, no parágrafo anterior, *para+ncéfalo, *para+stesia e*para+dontia.  Que se aceitem, ao lado de para+olimpíada epara+olímpico, variantes como par+olímpico e par+olimpíada é perfeitamente defensável — mas jamais abantesmas do calibre de *para+límpico ou de *para+limpíada, como querem nos impingir, que parecem muito mais associadas a limpo e limpar do que a olímpico eolimpíada. Os ingleses não se importam com paralympics eparalympism porque, para eles, os efeitos colaterais são inexistentes; aqui, no entanto, dizer que tal medalhista é o "grande destaque do paralimpismo brasileiro" sugere atividades mais relacionada à limpezaque ao esforço esportivo e permite (não fosse o brasileiro malicioso!) algumas ilações bem escatológicas... 
* colunas extraídas do blog Sualíngua, do Professor Cláudio Moreno


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