sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Deficiência e Espiritualidade

VEJAM MAIS SOBRE ESPIRITUALIDADE E DEFICIENCIA EM : http://www.mid.org.br/images/stories/deficiencia_espiritualidade/DolentiumHominu_n68.pdf e http://www.mid.org.br/index.php/deficiencia-e-espiritualidade


As pessoas com deficiência nos discursos e espaços eclesiais
Elizabete Cristina Costa Renders

Introdução

A história da humanidade está cheia de boas intenções (solidariedade), todavia, ela também traz subjacentes antigas visões (clínica-terapêutica e assistencialista-caritativa) e antigas soluções (carregar a cadeira de rodas) que não dão visibilidade às pessoas com deficiência (sua dignidade e seus direitos como cidadãs).
Em 1990, a ONU definiu que “a equiparação de oportunidades para pessoas deficientes deverá ser a prioridade na formulação de ações de longo prazo, visando uma sociedade para todos” . Nestes termos, incapacidade passa a ser vista um problema de toda a sociedade e, por conseguinte, a equiparação de oportunidades é uma exigência ética universal. Trata-se do “modelo social de deficiência” . Portanto, o desafio está na construção de espaços acessíveis (incluindo igrejas) a todas as pessoas e no conseqüente rompimento de barreiras (físicas, comunicacionais ou atitudinais) socialmente impostas às pessoas com deficiência.

m busca de novos olhares e novos caminhos...
“Gradativamente, estamos começando a mostrar que, por trás de um deficiente há sempre uma pessoa que quer estar entre nós, que quer ser um membro ativo na nossa sociedade e que quer desfrutar da vida, como todos nós. E isto não é uma questão de caridade. É, acima de tudo, um direito a ser respeitado”.

A sociedade ocidental foca a realidade a partir da perspectiva classificatória e seletiva (pensamento cartesiano), por conseguinte, estamos imersos em falácias dicotômicas que legitimam a incapacidade de uns em função da capacidade de outros. Todavia, Assmann nos adverte para o “único real plenamente afirmável: o de que somos corporeidades imersas em relações sociais de construção de significações/sentidos para o viável (e até para o inviável!)” . Nestes termos, podemos perguntar pela “corporeidade das pessoas com deficiência” e pelas “relações sociais de construção de significações/sentidos para o viável (e até para o inviável)” nas quais elas estão imersas. Quais são as falácias postas pelas “significações sociais” construídas em relação às pessoas com deficiência? De quais verdades precisamos nos despir para considerar e respeitar a corporeidade das mesmas?
As objetivações sociais, impostas pela sociedade às pessoas com deficiência, legitimam falácias, tais como: a pessoa com deficiência é fraca e infeliz, a pessoa com deficiência não é inteligente e eficaz, a pessoa com deficiência não tem capacidade para viver em sociedade e exercer sua cidadania, a pessoa com deficiência é uma pessoa eternamente dependente e infantilizada, a pessoa com deficiência não pode exercer sua sexualidade, etc.

Além de contribuir de forma subjacente para este processo (força simbólica de uma antropologia teológica dicotômica e hierárquica), os discursos teológicos e as práticas eclesiais estão marcados por metáforas que afirmam a realidade das pessoas com deficiência em formas desqualificadas de ser e viver: o cego como sinônimo de perdido, surdo como sinônimo de desobediente, deficiência física como sinônimo de vida desregrada e falta de fé, etc. E ainda, insistem na deficiência como punição ou na impossibilidade das pessoas com deficiência serem protagonistas de suas vidas. Como podemos romper e desvelar estas falácias? Provavelmente, daremos o primeiro passo neste sentido quando nos despirmos dos preconceitos (alimentados pelas falácias cartesianas) e enxergarmos a diversidade humana - aprofundando os aspectos comuns entre corporeidades diferentes, sem ocultar as diferenças que compõem a sociedade humana.

No momento em que pudermos respeitar e considerar a condição humana das pessoas com deficiência, em sua complexidade , poderemos incluir em nossa percepção do “ser” humano, novas categorias, tais como: ser cego, ser surdo, ser surdo-cego, ser paraplégico, ser tetraplégico, ser autista, etc. E mais que isto, poderemos dar visibilidade à vulnerabilidade humana com todos os seus desafios postos, onde fraqueza, dor, medo, erro, instabilidade, incapacidade, etc poderão também ser categorias que nos ensinam a ser, viver e aprender.

Neste sentido, o Conselho Mundial de Igrejas construiu um documento que faz algumas perguntas bastante pertinentes:
A deficiência é realmente algo que, de fato, mostra a fraqueza na vida humana? É esta uma interpretação limitadora e opressiva? Não seria melhor se adotar uma interpretação diferente e mais radical? A deficiência é realmente algo limitador? Enfatizar a deficiência como sendo uma perda é adequado, apesar de ser um estágio de uma jornada assumida pelas próprias pessoas com deficiência? A linguagem da diversidade não seria mais adequada? Não seria a deficiência algo que Deus mesmo criou a fim de construir um mundo mais diversificado, plural e rico? Não seria a deficiência um presente de Deus ao invés de uma condição limitadora que algumas pessoas precisam suportar?
Se não reconhecermos a corporeidade humana em suas mais diferentes formas, não seremos capazes de construir espaços sociais acessíveis a todas as pessoas, continuaremos a construir igrejas com enormes escadarias, sem considerar a importância dos encontros entre todas as pessoas para o reconhecimento de nossa comum condição humana.

Infelizmente, na maioria dos espaços eclesiais, repete-se, justifica-se e, desta forma, se fortalece a discriminação pela limitação. Nos termos do CMI, as “pessoas com deficiência não conseguem relacionar-se com outras pessoas das Igrejas no mesmo nível, pois são, de alguma forma, encaradas como inferiores e não como plenamente humanas” . A solução encontrada para superar a discriminação está na introdução da categoria diversidade na fala teológica, pois, em algumas igrejas, as “ações relacionadas a pessoas com deficiência transformaram-se de atos de ‘caridade’ em reconhecimento dos seus direitos como seres humanos”. Neste sentido, aponta-se a cristologia como a porta de entrada para construções teológicas inclusivas - Jesus Cristo respeita e acolhe a todos, sem fazer acepção de pessoas. Cristo acolhe toda a condição humana, inclusive sua vulnerabilidade. Se Cristo é a verdadeira imagem de Deus, deve-se fazer perguntas radicais sobre a natureza do Deus que está sendo projetado. No centro da teologia cristã existe uma crítica ao sucesso, ao poder e à perfeição, e uma dignificação da fraqueza, imperfeição e vulnerabilidade.

Assim, as tradicionais interpretações da deficiência pela Igreja - tais como: punição de pecados cometidos pela pessoa ou pela família em gerações anteriores; um sinal de falta de fé que impede que Deus opere a cura; uma manifestação demoníaca, sendo necessário o exorcismo para superar a deficiência, etc. - devem ser superadas. Tais práticas não dignificam a pessoa humana, mas oprimem e desqualificam a pessoa com deficiência para a convivência social em iguais condições de direito. A declaração, então, defende que:
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As pessoas com deficiência nos discursos e espaços eclesiais - Parte 2

1) A teologia cristã deve interpretar a imago Dei de um ponto de vista cristológico e soteriológico (a salvação do mundo por Cristo), que indique para além das costumeiras perspectivas criacionistas e antropológicas; 2) a teologia cristã deve assumir uma perspectiva inclusiva e não elitista do corpo de Cristo como paradigma para entender a imago Dei; 3) sem a total incorporação de pessoas que possam contribuir com sua experiência de deficiência, a igreja carecerá da glória de Deus e não pode pretender estar na imagem de Deus. Sem o insight daquelas pessoas que têm a experiência com deficiência, alguns dos mais profundos e singulares elementos da teologia cristã facilmente se deturpariam ou perderiam.
Moltmann , por sua vez, nos adverte que o encontro e o reconhecimento do outro é uma das formas de superação do medo e do rechaço em relação às pessoas com deficiência e, por conseguinte, o caminho para a construção de uma comunidade inclusiva. Na perspectiva deste teólogo, o ser humano constitui-se como pessoa mediante o encontro com o outro e somente o encontro das pessoas, em sua condição humana, poderá quebrar este círculo de medo, rechaço, discriminação e exclusão.
As experiências de inclusão nos diversos espaços sociais realmente têm demonstrado que o medo do encontro somente desaparece no ato de encontrar. Quando passamos a conviver com as pessoas com deficiência, nós descobrimos quem realmente é esta pessoa – nosso olhar converte-se da deficiência para a nossa comum condição humana - no sentido da percepção de que todos nós temos deficiências e habilidades.
A convivência, portanto, possibilita o rompimento de preconceitos e estigmas, o que contribuirá para a minimização das objetivações sociais impostas às pessoas com deficiência. Na relação pessoa a pessoa, as sujeiticidades se constroem – nelas não há espaço para as objetivações ou hierarquizações das diferenças ou deficiências. Ou seja, é o reconhecimento da complexa condição humana de todos nós – seja como fracos ou fortes, ou as duas coisas ao mesmo tempo – que possibilitará a construção de uma comunidade para todos (nos termos do paradigma da inclusão).
A reconciliação com a condição humana é, ao nosso ver, uma das vias de recuperação da função religiosa no mundo contemporâneo. O cristianismo tem, nos termos do campo religioso, como um papel profético elevar o padrão humano da sociedade contemporânea. Especialmente em relação às pessoas com deficiência, a teologia pode contribuir no sentido da re-significação da dignidade humana como um atributo de todas as pessoas, onde a dignidade original de todos converte-se em direito humano.
A teologia, portanto, pode contribuir no sentido de uma antropologia que construa, e não diminua, o ser humano em função de suas deficiências. Enfim, uma antropologia que reconheça a vulnerabilidade e interdependência humana. Trata-se, evidentemente, de uma conversão, a conversão do olhar classificatório (seletivo e excludente) em olhar relacional – que permite visualizar a condição humana em toda a sua diversidade e complexidade.

Considerações finais

Uma teologia inclusiva exige novas categorias epistemológicas. Categorias como complexidade, diversidade e vulnerabilidade contribuem para o desenvolvimento da sensibilidade solidária e do respeito à dignidade humana. Neste sentido, é possível ampliar o olhar e a sensibilidade humana diante da realidade e abrir as portas teológicas para a consideração de uma diversidade de saberes ainda não considerados.
Os saberes, diferentemente sábios , ainda estão em construção. Portanto, nos permitem deixar muitas perguntas abertas para o percurso que ainda se abre (processo histórico), a cada novo dia, às comunidades cristãs e aos discursos teológicos. Quais são os saberes que as pessoas com deficiência têm sobre Deus? Como elas se relacionam com Deus a partir de suas experiências? Como reconhecer a perfeição da criação em meio às limitações e potencialidades de uma corporeidade diferente? Poderíamos, ainda, fazer um exercício de sensibilização e imaginar:
• Como é ser e viver, como cego, numa comunidade cristã onde se fala o tempo todo em visão e em luz...
• Como é ser e viver, como surdo, numa comunidade cristã onde apenas se fala ou se canta, como se o mundo fosse feito apenas de sons...
• Como é ser e viver, com déficit cognitivo, numa comunidade cristã que fala de Deus somente com confissões racionais...
• Como é ser e viver, com deficiência física, numa comunidade cristã que conhece apenas um jeito de caminhar e de chegar...
Nos vemos, portanto, diante dos desafios postos por novos caminhos...Caminhos inclusivos!
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