terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Após acidente, cadeirante cuida da casa e da filha e quer velejar em 2015


Leandro de Oliveira dirige, faz tarefas do lar e realiza tratamento para andar.
Ex-agente penitenciário perdeu os movimentos das pernas após acidente.

Felipe TrudaDo G1 RS
Com cadeira de rodas, Leandro cozinha para ele e para a filha Lívia (Foto: Felipe Truda/G1)Com cadeira de rodas, Leandro cozinha para ele e para a filha Lívia (Foto: Felipe Truda/G1)
Em uma casa no bairro Camaquã, na Zona Sul de Porto Alegre, Leandro Rosa de Oliveira acorda todos os dias cedo para levar a filha Lívia, de quatro anos, à creche de carro. Após voltar, põe roupas para lavar na máquina, varre a casa e prepara o almoço. A rotina parece simples, não fosse um detalhe: o homem, agente penitenciário aposentado por invalidez, não caminha há mais de quatro dos 32 anos de vida, devido a um acidente de trânsito em 2011. Sentado em sua cadeira de rodas na sala de estar da residência, Leandro lembra a importância de realizar tarefas normalmente para sua reabilitação.
Leandro ao lado da filha Lívia. Ao fundo, o andador usado pelo cadeirante (Foto: Felipe Truda/G1)Leandro ao lado da filha Lívia. Ao fundo, o andador
usado pelo cadeirante (Foto: Felipe Truda/G1)
"Peço para pessoas com deficiência não deixarem os outros trazerem tudo nas mãos, porque é algo que facilita. É cômodo você estar em casa e receber o almoço, o copo d’água nas mãos. E cada coisa que você deixa fazerem, por mais simples que seja, o corpo deixa de se movimentar e você freia sua reabilitação. Digo para o pessoal não desistir e sempre buscar um recurso, buscar um profissional da área, porque a vida não termina. A vida só termina para quem quer", afirma.
Para 2015, o cadeirante tem mais uma meta: voltar a velejar. Ele já havia praticado a vela adaptada por meio de uma iniciativa gratuita realizada no Iate Clube Guaíba, na Zona Sul de Porto Alegre. "Eles têm fisioterapeutas à disposição e uma equipe para te locomover e te colocar nas velas e depois saem contigo, com colete salva-vidas e tudo", conta empolgado.
O acidente aconteceu em 2011, quando Leandro ainda trabalhava na Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), tendo como tarefa investigar possíveis delitos cometidos dentro de prisões em todo o estado. Ele viajava de carro com um colega na BR-290 em Alegrete, na Fronteira Oeste, quando o veículo, a 150 km/h, colidiu com uma carreta. O motorista morreu, e ele foi auxiliado por um agricultor que passava pelo local e atendido às pressas por um médico argentino que havia parado na estrada. O condutor da carreta chegou a ficar hospitalizado, mas se salvou. "Só sei disso porque ele relatou. Eu não lembro, porque a pancada na cabeça me deu traumatismo e apagou umas duas horas de memória", conta.
Rampa foi colocada no pátio para Leandro entrar em casa (Foto: Felipe Truda/G1)Rampa foi colocada no pátio para Leandro entrar em casa (Foto: Felipe Truda/G1)
Após o acidente, Leandro ouviu dos médicos que não poderia mais caminhar. Foi submetido a uma cirurgia "apenas para poder sentar". O golpe só não foi mais duro que a reação da filha ao vê-lo no hospital. "O que mais me doeu foi quando ela chegava ao hospital bebê, no colo dos outros, olhava pra mim e não queria chegar perto. Eu estava com aparelhos ligados ao meu corpo e ela não me reconhecia".
Após sair do hospital, Leandro foi encaminhado para o Centro de Reabilitação de Porto Alegre (Cerepal) e, posteriormente, para a AACD, entidade que atende portadores de deficiência. "Lá eu tive meus 11 meses de muita descoberta e evolução. Comecei a ver que um cadeirante poderia seguir a vida normalmente", contou.
Graças a tratamento, Leandro conseguiu usar o andador (Foto: Felipe Truda/G1)Graças a tratamento, Leandro conseguiu usar o
andador (Foto: Felipe Truda/G1)
Em meio à reabilitação, se separou da ex-mulher. O cadeirante, no entanto, garante que o fim do relacionamento não foi consequência do acidente. "O casamento já não ia bem mesmo", diz. Da união que fora interrompida, surgiu a grande motivação para seguir em frente. A guarda da pequena Lívia é compartilhada, mas Leandro aproveita o tempo livre para tomar conta da filha, que dorme ora com o pai, ora com a mãe.
Enquanto o pai supera as limitações para tomar conta da filha, a pequena Lívia retribui ajudando em tarefas simples, desde recolher prendedores de roupa que caem pelo chão até carregar o carrinho de compras. "E ai de mim se não deixar. Já me senti constrangido em supermercados, pois ela pega o carrinho da minha mão e vai levando. O pessoal fica me olhando e eu digo que, se eu tirar o carrinho dela, arrumo briga. Ela vai empurrando até pesar. Quando pesa, me entrega. Ela é um anjo".
A força de vontade é tanta que Leandro já contrariou uma projeção dos médicos. Após ouvir que nunca se levantaria da cadeira de rodas, ele foi procurado por uma especialista em reabilitação de pacientes com lesão medular. Cerca de um ano depois de dar início ao tratamento, ele já caminha com a ajuda de um andador.
"Ainda uso bastante a cadeira, pelo fato de cozinhar, pois se eu chego perto do fogão com o andador, corro o risco de cair e me queimar. Mas eu saía sempre em meu carro adaptado com a cadeira. Hoje não, eu saio com o andador, porque eu chego nas casas e consigo ir ao banheiro, e chegar a outros cômodos, pois muitas casas são limitadas para cadeira. Hoje dou valor por poder estar no andador", afirma.
Observado por Lívia, Leandro mostra como dirige no carro adaptado (Foto: Felipe Truda/G1)Observado por Lívia, Leandro mostra como dirige
no carro adaptado (Foto: Felipe Truda/G1)
Se a pequena Lívia faz com que Leandro se sinta motivado a dar sequência à sua reabilitação, a fé em Deus é o principal alicerce ao qual ele se apoia. Em meio a tantas tarefas, não deixa de ler a Bíblia. Uma vez por semana, participa de cultos e grupos de estudo religiosos. A crença no cristianismo já existia, mas se fortaleceu quando o ex-agente penitenciário ainda estava no leito do hospital após o acidente e um homem foi falar com ele, para pregar a religião evangélica. Em meio à conversa, Leandro descobriu que se tratava de um velho conhecido. Os dois serviram juntos ao Exército em 2001 em Bagé, na Região da Campanha. Para ele, não foi uma simples coincidência. "A partir dali eu decidi entregar a minha vida para o Senhor".
Em meio a tantos afazeres, Leandro ainda encontra tempo para defender sua classe. Ele explica que, ao se aposentar por invalidez devido a um acidente de trabalho, obteve o direito de receber um salário equivalente à maior remuneração que poderia alcançar se a carreira não tivesse sido abreviada. Como era da categoria A, a primeira após o funcionário ingressar na Susepe, receberia o valor da categoria E, a última a ser atingida.
Porém, uma lei que vigora desde maio de 2013 não prevê este benefício, o que reduziu a remuneração de Leandro. "Cada um dos poucos aposentados por invalidez da Susepe ficou recebendo de acordo com a classe em que estava. Eu sou o mais prejudicado, porque meu salário ficou como se eu recém tivesse ingressado no estado", argumenta.
Leandro praticou vela adaptada no Iate Clube Guaíba (Foto: Arquivo pessoal)Leandro praticou vela adaptada no Iate
Clube Guaíba (Foto: Arquivo pessoal)
Mas se acomodar não é da índole de Leandro, que fez contato com o Sindicato dos Servidores Penitenciários do Rio Grande do Sul (Amapergs) e com os demais aposentados na mesma situação que ele para tentar reverter a situação. Há duas semanas, pouco antes do recesso parlamentar, esteve na Assembleia Legislativa para acompanhar uma sessão que poderia terminar com a aprovação de uma emenda prevendo a volta do benefício. Apesar de não ter tido sucesso na empreitada, ouviu de deputados governistas e oposicionistas – papéis que se inverterão a partir da posse de José Ivo Sartori (PMDB) em janeiro – o compromisso com sua causa.
Sendo nas galerias da Assembleia Legislativa, em um barco à vela, no caminho da creche da filha ou na cozinha da própria casa, Leandro ensina uma lição não apenas para os cadeirantes, mas para os seres humanos: é preciso superar obstáculos para sentir-se vivo.

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