Na ponta dos pés, a bailarina Aline Fávaro acaba de cruzar a linha dos 30 anos e, ao som de música clássica, soprou as velas do 31º aniversário.
Até uma década atrás, esta era a faixa-etária máxima da expectativa de vida dada às pessoas com síndrome de Down. Hoje, os dados oficiais indicam limite de idade entre 60 e 70 anos, o que impõe novos desafios no atendimento e no acolhimento desta população.
A dança foi uma das ferramentas usadas para mostrar que ela é capaz. Foto: Flávia Alves
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Vestindo tutu, com cabelos presos em coque e maquiagem nos olhos verdes e levemente puxadinhos, Aline já mostrou em palcos brasileiros e internacionais (Espanha, São Paulo, Curitiba, Brasília e Rio de Janeiro são alguns exemplos) a receita de saúde que, segundo o geneticista Zan Mustacchi – um dos maiores pesquisadores da área – foi a mais determinante para ampliar a vida dos 300 mil brasileiros que convivem hoje com a alteração no cromossomo 21, a origem genética da síndrome.
“Óbvio que os avanços da medicina, em especial na área cardíaca, influenciaram no aumento da sobrevivência. Mas a grande revolução foi trazida pela oportunidade conquistada por eles de mostrar os talentos artísticos e outras formas de inserção social” define Mustacchi, que trabalha com as crianças Down há 35 anos e é chefe do Departamento de Genética do Hospital Infantil Darcy Vargas, em São Paulo.
“Não paira mais nenhuma dúvida de que as pessoas com a síndrome são capazes, e mais: devem, ter rotinas produtivas, familiares, amorosas. Isso agrega qualidade de vida, um aspecto fundamental para a boa saúde”, afirma o médico.
Aline dança desde os 8 anos e evoluiu nas coreografias – hoje feitas em sapatilha de ponta como primeira bailarina especial do grupo de dançarinos ‘comuns’ – ao mesmo tempo em que foi alfabetizada.
Os pais, João e Eleide Fávaro, ambos com 67 anos, só conheceram o que era síndrome de Down após o nascimento da primeira filha.
“Nunca tinha ouvido falar antes e confesso que fiquei perdido no início”, lembra João.
“Mas assim que tomei conhecimento do que era esta condição procurei estimular a Aline de todas as formas possíveis. O meu objetivo era que ela nunca perdesse a vontade de correr atrás dos sonhos. Eu sempre fui fã de música sertaneja, mas a minha menina ficou encantada pela melodia clássica. Começou a dançar imitando a Xuxa e virou bailarina profissional. Até na Espanha já foi aplaudida por uma plateia toda em pé.”
Corações em alerta
Enquanto leva a filha três vezes por semana às aulas de balé clássico, João não descuida dos check-ups feitos por Aline. De acordo com o especialista do Hospital Darcy Vargas, metade das pessoas que nascem com Down apresenta problemas cardíacos. Deste grupo de cardiopatas, 50% precisam de alguma intervenção cirúrgica.
“Neste ponto, estão os principais avanços médicos para os pacientes. Hoje, contamos com aparato tecnológico para fazer as operações no momento oportuno, que são os primeiros meses de vida”, explica Zan Mustacchi.
“Há dez anos, não tínhamos este artíficio. Perdíamos o timming ideal da cirurgia e, por conviverem com os malefícios de um coração malformado, as pessoas com Down tinham uma sobrevida muito mais diminuta.”
A bailarina Aline não nasceu com nenhuma complicação cardíaca, mas por garantia, tem os batimentos do coração acompanhados anualmente. Apesar da saúde de ferro e do fôlego de sobra para as piruetas, a alteração genética faz com que ela – assim como todos os outros com a síndrome – tenha estrutura metabólica mais lenta. Isso favorece o ganho de peso e, de quebra, os outros problemas que acompanham a obesidade, como colesterol em descontrole e
diabetes .
Por isso, desde sempre, a família Fávaro não descuidou da alimentação. Aline, enxuta aos 31 anos, diz que sempre teve “boca boa” para saladas, legumes e grelhados.
Linguagem universal
Para Sandra Cristina Fonseca Pires, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e especializada em Down, além do acompanhamento nutricional desde os primeiros dias de vida, também é importante o acesso à fonoaudiologia.
“Em alguns casos, a estrutura e a elaboração da fala podem ficar comprometidas”, explica.
“Os exercícios fonoaudiológicos são importantes para a comunicação como um todo. Para algumas pessoas com Down, nem sempre é possível ter a fala sem comprometimento. A fono ajuda a elaborar todas as formas de linguagem, inclusive a corporal, mecanismos importantes para a comunicação”, diz ela, ressaltando que mesmo quando não há fala, não significa que não há compreensão do que é dito.
Novos desafios
Sandra avalia que uma comunicação bem trabalhada contribui para as pessoas com Down desfrutarem plenamente da expectativa de vida conquistada. Para ela, viver mais foi um ganho e impôs novos desafios aos médicos que cuidam da área.
“Apesar do déficit cognitivo – em maior ou menor grau – que existe na síndrome de Down, o maior avanço que tivemos foi ter descoberto que eles são muito mais capazes do que acreditávamos no início”, diz a especialista.
“O maior desafio é continuar apostando neles. Por isso, também é preciso criar estruturas de atendimentos para acolher o adulto com a síndrome e compreender todos os aspectos que envolvem o envelhecimento desta população. O adulto com síndrome é muito novo para gente”.
“Prefiro falar com a ponta dos pés”, diz.