Espanando o pó de giz
Por Lucio Carvalho *
Minha vida sempre foi cercada por professores da escola pública. Minha mãe, professora. Muitas tias professoras. Amigos e conhecidos, vários. Não sou eu mesmo professor, mas sou casado com uma. É o tipo de pessoa que é sempre boa companhia. Boas histórias para contar, muitas queixas incríveis para ouvir… Só tento assimilar ainda o tanto de trabalho que aporta em casa, às vezes em feriados e fins de semana. Com salários tão ruins, vale mesmo à pena?
Vale, é a resposta que ouço mais frequentemente. Não pelo salário, óbvio que não. Pelo reconhecimento de políticos e gestores? Nem pensar, seria esperar em vão. Mas vale porquê, então? Vale por corresponder às expectativas de crianças e adolescentes. Vale pelos alunos. Não vale pelo vale-refeição. Nem pelo vale-transporte-lotado. Aí não vale mesmo.
Colocando na balança, bem que talvez valesse buscar outra profissão. Porque ao simples exercício democrático de reclamar melhores condições de salário, os professores da escola pública têm recebido sabe-se muito bem o quê. Sim, direto nos olhos, spray de pimenta. Cassetete nas costas. Recepção estatal da tropa de choque. Descaso e violência.
Sem falar em outro tipo de violência também bastante habitual. A violência pedagógica que a tecnocracia de tanto em tanto tempo impinge aos “mestres”. Projetos complexos que, de um ano para o outro, mudam radicalmente, demonstrando a clara dissociação que há entre a realidade das salas de aula e a imaginação de quem elabora políticas educacionais. Mesmo assim, grandes parcelas de recursos destinam-se a tais projetos, mesmo que para pagar consultores que, via de regra, pensam entender melhor do riscado do que aqueles que estão ali na frente, cobertos do pó de giz.
Mas o desrespeito a que estão submetidos os professores é sem limite. São os alunos que têm a consciência precoce que a educação que recebem é desconsiderada pela sociedade e recolhem-se ao destino do subemprego e do abandono das classes. São as famílias que usam a escola como extensão de suas casas e também não depositam muita esperança no resultado do processo educacional. São as próprias comunidades que demonstram ter perdido toda a fé em que a educação possa lhes alterar o destino.
Parece desolador demais? E é mesmo, mas é claro que pode ser diferente. Sem começar pela elementar necessidade de melhor remunerar os professores, entretanto, não há projeto milagroso capaz de revolucionar a educação. Mesmo que a lei do piso vigore já há alguns anos, são muitos os estados que ainda não chegam nem ao rés do chão. É o caso do Rio Grande do Sul, estado do Ministro da Educação que assinou a lei, o atual governador Tarso Genro, do PT. E o que falar do Rio de Janeiro, estado que nem sequer oferece plano de carreira aos professores e vem protagonizando tratamento e cenas vexaminosas em relação às reivindicações e protestos da classe?
Muitas pessoas dizem que ser professor na atualidade é quase uma “profissão de fé”, e eu tendo a concordar cada vez mais com a ideia. Têm coisas que só mesmo a fé consegue explicar (e suportar). Num país que se quer orientar pelo desenvolvimento social e econômico, é incompreensível constatar que a educação não integre esse projeto de nação. Promessas de investimentos colossais, como os que deverão advir da exploração do pré-sal, continuarão a ser promessas caso os municípios, estados e governo federal continuarem protagonizado casos escandolosos de corrupção com verbas do FUNDEB, da merenda e não demonstrem evidência em sentido contrário. Diante de um cenário desses, haja fé…
Boas práticas, entretanto, são como oásis para todos que ainda a mantém consigo, a tal fé. É o caso que o PORVIR trouxe no mês passado sobre o CIEJA Campo Limpo, onde a diretora, Dona Eda, provou ser capaz de, mesmo com os alunos mais improváveis (adultos e jovens que a própria dinâmica escolar e social vem enxotando das escolas), recuperar para a própria vida e para um destino menos cruel que a marginalidade social.
É inspirado em seu exemplo e no daqueles professores que diariamente desafiam o terremoto que quase faz sucumbir a educação pública e suas possibilidades, da qual em última análise depende o futuro de nosso país, e também por respeitar o exemplo que tenho em torno de mim, que faço o registro da data. É que diante de políticos tão safados e oportunistas, só restar ter fé mesmo é nos professores. E desejar que as próximas palestras sobre “resiliência” para que os convoquem sejam finalmente ministradas por eles mesmos, habílissimos que são no assunto. E chega de espanar o pó de giz.
* Coordenador-Geral da Inclusive – Inclusão e Cidadania e autor de Morphopolis (www.morphopolis.wordpress.com)
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