sábado, 15 de agosto de 2015

Vítimas da "guerra urbana", militares se reinventam após tragédias pessoais


Delegação brasileira em Toronto conta com atletas que se tornaram deficientes físicos durante combate ao crime organizado no Brasil. Ex-policiais se destacam no atletismo

Por Direto de Toronto, Canadá
Chegava ao fim mais um dia de trabalho. Cansado, o policial militar Jonas Licurgo voltava para casa de carro com três colegas quando se deparou com uma ocorrência policial pelo caminho. Na tentativa de interceptar os criminosos, o carioca, então com 30 anos, acabou baleado acidentalmente na coluna. O tiro deu fim à carreira policial de Jonas, que ficou paraplégico. O ano era 2000. Passados os seus dois primeiros anos como cadeirante, o carioca conheceu o esporte adaptado. Seu primeiro contato com o mundo paralímpico foi no basquete em cadeira de rodas. Pouco depois, descobriu o atletismo. Hoje, o policial reformado é dono de seis recordes das Américas no lançamento de disco e no lançamento de dardo, categoria F55. Jonas é apenas um dos diversos integrantes da delegação brasileira que viraram deficientes físicos em função da violência nas grandes cidades. O carioca estreou no Parapan de Toronto nesta terça-feira, ficando em 10º no lançamento de disco F54/55/56, com a marca de 26,47 metros.
Jonas Licurgo e André Rocha atletismo Parapan Toronto (Foto: Flávio Dilascio)Jonas Licurgo (à esquerda) e André Rocha: militares que se reinventaram após tragédias pessoais (Foto: Flávio Dilascio)
- Quando levei o tiro, vi que algo de errado havia acontecido, pois os movimentos das pernas pararam na hora. Não conseguia fazer mais nada, nem sair do carro. No hospital, uma semana após eu ser operado, foi que o médico falou que a bala havia afetado a minha coluna e a minha medula e que eu provavelmente não andaria mais. É claro que uma notícia dessa para quem está com 30 anos de idade é algo que abala. Os dois primeiros anos foram muito difíceis, de adaptação à minha nova realidade. Felizmente, descobri o esporte paralímpico e me encontrei. Hoje, sou o segundo melhor do mundo na minha modalidade e reconhecido internacionalmente - afirmou Jonas.
Atualmente com 45 anos,.Jonas se divide entre o atletismo e a sua nova função na área de segurança pública. Mesmo reformado na Polícia Militar do Rio, ele trabalha como agente da Lei Seca na capital fluminense, atuando na parte de conscientização dos motoristas sobre a importância de não beber quando for dirigir. Dos seus tempos de PM, Licurgo trouxe para o esporte a disciplina militar e a capacidade de lidar com situações de grande pressão.
- Nós militares, quando entramos para o esporte, levamos uma certa vantagem, pois já estamos acostumados a toda aquela disciplina que faz parte da nossa vida. Nós já sabemos a postura que devemos ter no esporte, pois estamos representando não só o nosso estado e a nossa instituição, mas sim todo o Brasil. Competir em um evento como o Parapan é uma pressão muito grande, então nós militares saímos um pouco mais à frente nisso, pois nos acostumamos com isso no nosso dia a dia - destacou. 
André Rocha Parapan de Toronto (Foto: Divulgação/Comitê Paralímpico Brasileiro)André conquistou medalha de prata em Toronto (Foto: Divulgação/Comitê Paralímpico Brasileiro)
Colega de Jonas na seleção brasileira de atletismo, André Luís Rocha também conheceu o esporte paralímpico pela mesma razão. Ex-integrante da Força Tática do 5º Batalhão de Polícia Militar de Taubaté-SP, ele ficou paraplégico em 2006 aos 29 anos durante uma ação contra criminosos em sua cidade. André começou no atletismo em agosto de 2013. O esporte o livrou de um longo período de depressão causada pela sua nova condição física. O paulista estreou no Parapan de Toronto nesta segunda-feira, quando ganhou medalha de prata no arremesso de peso classe F54/55 com a marca de 9,64 metros.
- Depois que eu sofri o meu acidente, fiquei muito tempo em depressão e um belo dia, por acaso, em uma consulta médica com os meus filhos, vi uma revista sobre os atletas paralímpicos da minha cidade que haviam voltado dos Jogos Regionais com medalhas. Foi ali que eu descobri que existe o atletismo adaptado. Procurei um lugar perto da minha casa para treinar, e os resultados foram aparecendo rapidamente. Logo em 2014, quebrei vários recordes e as coisas foram acontecendo em uma velocidade muito grande - destacou.
Diferentemente de Jonas, André não perdeu o movimento das pernas em decorrência de um tiro. O acidente que mudou a vida do paulista aconteceu quando ele caiu de um muro bem alto durante uma perseguição a criminosos em Taubaté. André teve lesão na coluna e não escapou de ficar paraplégico. Nos primeiros anos da sua nova condição física, o hoje policial reformado sofreu muito com as dores.
- Tomei muita morfina por uns três ou quatro anos, de quatro em quatro horas, porque eu tinha dor neuropática crônica. Anos depois, fiz implante de marcapasso medular, que é o que me auxilia na dor hoje em dia. Durante três anos, fiz tratamento psicológico. Entrei numa depressão profunda, da qual eu só saí quando descobri o esporte adaptado e acordei para vida. Hoje sou uma outra pessoa - revelou.
Se os ex-policiais Jonas e André encontraram uma nova perspectiva de vida no atletismo, o paraibano Joseano Felipe optou pelo halterofilismo paralímpico. Depois de ficar paraplégico ao ser baleado durante uma troca de tiros em dezembro de 2000, ele lamenta que muitos policiais brasileiros venham tendo o mesmo destino que o seu nos últimos anos
Joseano Felipe halterofilismo parapan (Foto: Fernando Maia/MPIX/CPB)Joseano Felipe: "A violência no nosso país está crescendo cada vez mais" (Foto: Fernando Maia/MPIX/CPB)
- A violência no nosso país, com tantos bandidos, está crescendo cada vez mais, infelizmente. Tenho outros companheiros de polícia que também sofreram como eu e agora estão em outras modalidades - disse Joseano, que conquistou a medalha de ouro categoria na unificada até 107kg/acima de 107kg nesta terça-feira. 
A tragédia na vida de Joseano aconteceu no dia 4 de novembro de 2000. Na ocasião, o paraibano combatia uma fuga no presídio da sua cidade, Alcaçuz, quando levou um tiro na coluna. Integrante do pelotão de choque e da tropa de tiro da polícia local, ele ressalta que o esporte paralímpico "salvou" a sua vida.
- Na época do meu acidente, o esporte paralímpico não era tão divulgado. Por sorte fui fazer hidroterapia num lugar em que tinha um pessoal do esporte. Eles me fizeram um convite, entrei e estou até hoje. O esporte salvou minha vida, quando levei o tiro achei que minha vida tinha acabado. Mas o esporte me mostrou esse caminho de continuar tendo um convívio social e hoje isso para mim é tudo - destacou.
Além dos casos de Jonas, André e Joseano, a delegação brasileira no Parapan de Toronto conta com ex-policiais que viraram deficientes em tragédias pessoais ocorridas fora do ambiente de serviço. Integrantes da seleção brasileira de rúgbi em cadeira de rodas, Davi Abreu e Luis Fernando Cavalli sofreram acidentes em momentos de lazer. Davi perdeu os movimentos da perna ao bater com a cabeça no fundo de uma piscina em 2010. Nesta quarta-feira, a seleção brasileira de rúgbi em cadeira de rodas venceu a Argentina por 63 a 37 pela fase classificatória.
Luis Fernando Cavalli rúgbi em cadeira de rodas (Foto: Reprodução)O ex-policial Luis Fernando Cavalli, do rúgbi, acredita que o Brasil vive uma "guerra urbana" (Foto: Reprodução)
- Eu estou reformado, perco as obrigações militares, mas polícia é para o resto da vida. Tenho carteira de PM, porte de arma, tenho uma arma guardada ainda por exemplo. Sobrevivo com o salário da PM. Ser reformado é o que equivale a uma aposentadoria. O rúgbi é bem caro, acaba que a gente tira para colocar lá o dinheiro, mas acaba tudo bem no final - contou.
Luis Fernando, por sua vez, ficou tetraplégico ao sofrer um acidente de carro em 2004. Ele está na seleção brasileira de rúgbi desde 2010, mas, mesmo assim, não esquece as suas raízes militares. Segundo o atleta, até hoje o seu convívio com a Polícia Militar é "muito positivo", pois os ex-colegas de trabalho estão sempre lhe mandando mensagens de incentivo. Para Luis Fernando, o fato de o esporte paralímpico brasileiro contar com muitos ex-militares pode ser uma grande vantagem.
-  Não temos guerra no Brasil, espero que isso seja sempre uma realidade, mas temos a guerra urbana. Em números conseguimos perceber a quantidade de PMs mortos em serviço, PMs feridos em serviço e civis feridos em atividades da criminalidade. Nós temos uma atividade que se assemelha (com a guerra). Penso que cada vez mais deveríamos utilizar esse potencial do militar que acaba ficando inativo por algum tipo de deficiência. Por analogia, temos países como os Estados Unidos, que têm muitos militares que adquirem a deficiência em razão da atividade bélica e são muito utilizados no desenvolvimento paradesportivo. Esse militares que participaram de conflitos hoje são paratletas - finalizou.

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