Análise do documento “A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar. Transtornos Globais do Desenvolvimento” dos autores: José Ferreira Belisário Júnior e Patrícia Cunha, Brasília, MEC, 2010
Considerações feitas por Maria Elisa Granchi Fonseca*
O objetivo do documento foi contribuir para o desenvolvimento de práticas inclusivas na educação escolar de alunos com Transtornos Globais do Desenvolvimento. Como o próprio material diz na parte inicial, tem a função de disponibilizar subsídios teóricos necessários à compreensão do transtorno numa perspectiva de interface com a educação escolar. A minha leitura confirma que este objetivo foi cumprido, ou seja, somente dados teóricos foram listados no material. O fascículo pretendeu abordar, também, as práticas escolares, mas isso não foi concretizado após a leitura do documento. Não foi possível encontrar práticas associadas na leitura do material a não ser ligeiras citações com base na teoria, de certa forma, repetitivas. Além disso, metodologicamente, as citações de outros autores, outras obras e referências indicativas não foram citadas no corpo do manual (somente no final, na Bibliografia) ficando o leitor impossibilitado de fazer relações entre as idéias dos autores e estudos já concluídos.
O primeiro capítulo (páginas 8 a 12) faz uma revisão do conceito de autismo ligando as características dispostas pelo DMS-IV com as idéias de Kanner e Asperger, introduzindo o leitor na caracterização do quadro. Falam também das desordens associadas. No entanto, há um erro na descrição dos quadros de autismo e Síndrome de Rett (página 13) sendo que houve uma troca nas definições. A descrição de autismo está listando características da Síndrome de Rett e vice versa. Esse lapso pode ter ocorrido por falha de revisão e confundir o leitor, o que é preocupante para os fins aos qual o documento se destina. Em seguida, prossegue falando das teorias que explicam o papel das funções executivas e da teoria da mente no desenvolvimento de pessoas com autismo. Básico e sem novidades. No item 1.5, os autores dizem que posteriormente, as pesquisas fundamentadas em dados estabeleceram importantes modelos explicativos. O autismo passa a ser estudado e compreendido enquanto um transtorno do desenvolvimento. Deixa de ser apontado como uma psicose infantil para ser entendido como um Transtorno Global (ou Invasivo) do Desenvolvimento. Porém, ainda que tenham citado tais “modelo explicativos” na evolução do conceito do autismo, a discussão feita não os cita, deixando o leitor, principalmente os leigos, sem referência a respeito. Ainda assim, continua fazendo uma análise do aluno com autismo apoiada basicamente nas questões da função executiva e da teoria da mente, que por mais que sejam importantes para o entendimento, parecem insuficientes em se tratando o autismo de uma síndrome complexa e multifatorial. Caberia aqui, por exemplo, um posicionamento sobre as teorias das desordens sensoriais, o que ajudaria na explicação de muitos comportamentos autistas.
Sobre isso, o material aponta que na inclusão do autista na abordagem apresentada, haveria
(...) que configurar uma distinção fundamental entre a inclusão escolar e iniciativas de intervenção educacional exclusivamente para crianças e adolescentes com autismo. Nessas intervenções (as voltadas para o autista) são oferecidos ambientes absolutamente controlados, com redução de estímulos e intervenções nas regras de convivência nas atividades de vida diária e comunicação, que reforçam os prejuízos apresentados pelas pessoas com autismo.
Em minha opinião, este parágrafo está muito reduzido, tendencioso e generalizado. Creio que faltou como referencial teórico, uma explicação sobre as necessidades/dificuldades sensoriais no autismo, de onde partem também um outro lado que justificaria sim, o controle de estímulos em dado momento da vida da criança, como colocam Frith (1992), Goldstein (2008), Bosa & Callias (2000). Além disso, o fato de desconsiderar a importância da intervenção educacional para crianças e adolescentes com autismo, pode sugerir a negação de uma condição neurobiológica. Pensando nisso, a política do AEE descreve a aplicação de recursos especializados, ajustados, adequados e flexíveis para aqueles cujas necessidades de aprendizagem exibem características próprias. Adicionalmente, não fica claro em que medida e sob quais condições se postula que as supostas intervenções (quais seriam?) causariam os prejuízos citados no parágrafo.
Quando o material começa a falar sobre uma possível prática (a partir da página 23) fica muito clara a referência ao ensino estruturado e aos princípios do TEACCH como fundamentação das práticas inclusivas. No entanto, não há em nenhum momento, indicação bibliográfica citando isso, ou seja, por mais que os autores citam os princípios do TEACCH, não há na referência bibliográfica, nenhuma indicação e nenhuma postulação sobre seus possíveis benefícios. Desta forma, por mais que o texto confirme todos os princípios do programa estruturado próprio do TEACCH, ao mesmo tempo, contribui para que o mesmo mantenha-se afastado do conhecimento da população. Ainda que reconhecendo que estrutura e ordem não são características exclusivas do TEACCH, seria imaturo da parte de quem conhece deixar de fazer tal referência.
Para confirmar esta hipótese, é possível verificar que o documento se refere aos mesmos princípios que Mesibov, Shea & Schopler (2004), Peeters (1998) e Schopler & Mesibov (1994) colocam sobre o ensino estruturado proposto pelo TEACCH. Todos versam sobre previsibilidade, rotina, organização, estrutura e antecipação, conforme parágrafo abaixo:
Assim, no decorrer dos primeiros dias, é fundamental ter em mente que a experiência da escola necessita entrar, o quanto antes, num terreno mais previsível para aquela criança. (...) Quanto mais cedo a criança com TGD puder antecipar o que acontece diariamente na escola, mais familiar e possível de ser reconhecida se tornará para ela a vivência escolar (...).
Os autores do manual continuam relatando que
(...) uma estratégia que poderá ajudar é a utilização de recursos de apoio visual confeccionados pela escola, já que devem ser criados, com base no seu cotidiano, junto ao aluno, para serem associados, ao se dirigir a ele, a fim de comunicar-lhe sobre o que é esperado dele, o que acontecerá em seguida na rotina escolar e para oferecer-lhe o atendimento às suas necessidades ou a oportunidade de fazer escolhas. Tais recursos podem ser fotos de locais ou do aluno em diferentes momentos e espaços do cotidiano da turma, de objetos que indiquem necessidades básicas. Além de fotos, os objetos em si poderão facilitar a comunicação com o aluno.
Sobre este aspecto, vários autores fazem referência á importância da organização visual e apresentação visual da rotina como fundamentação do TEACCH, como por exemplo, Schopler, Lansing & Waters (1983), Grandin (1995), Bosa, Small & Kontente (2003), Notbohm & Zysk (2010). Esta abordagem orienta a visualização dos materiais, a indicação da rotina, a estrutura das tarefas e atividades, o trabalho em grupo, as atividades de lazer, brincadeiras, comunicação visualmente orientada e noção de fim, indo ao encontro da proposta do manual em questão.
(...) O convívio com pares restrito a outras crianças e adolescentes que também apresentam os mesmos prejuízos não permite que o aprendizado seja generalizado para situações sociais.
Discordo em partes. Essa parece ser uma afirmação simplista. Existem várias maneiras de orientarmos as crianças na generalização de situações sociais, muitas destas indo além da sala de aula. O texto sugere que essa habilidade social não seria adquirida caso a criança autista fosse atendida em AEE, crendo que tal atendimento a privaria socialmente. Dito de outra forma parece que o documento não está considerando a política do AEE da forma com que esta foi descrita: o AEE será oferecido para as crianças que estejam regularmente matriculadas na rede comum de ensino. Portanto, para crianças que estarão em contato diário com seus pares.
A maioria dos subsídios teóricos possui pouca ou nenhuma lógica da escola inclusiva, e as metodologias sugeridas em muitos deles dizem respeito a uma intervenção especializada e distante dos propósitos a que se presta a escolarização básica.
Parágrafo subjetivo. O leitor fica sem saber de quais subsídios teóricos o material está falando (faltou a referência: quais seriam as metodologias sugeridas?) e nem define sob quais aspectos consideram as supostas metodologias distantes dos propósitos da escolarização básica. Uma das preocupações da educação especial do século XXI é exatamente a adequação curricular mediante as flexibilizações voltadas para o autista enquanto aluno de um sistema escolar.
Tivemos a oportunidade de observar crianças que, ao ingressar na escola, apresentavam ausência de linguagem e realizavam atividades de pedir através do uso instrumental das pessoas e que, por meio da experiência no ambiente social da escola e da mediação dos professores e colegas, passaram a utilizar verbalizações nas atividades de pedir, abandonando o uso instrumental de outra pessoa.
Nesta parte, o texto faz uma afirmação perigosa. Infere-se que crianças passam a verbalizar por conta da mediação e da experiência social. Sugiro que, diante de uma conclusão como esta, dados específicos como análise dos dados, metodologia usada, procedimentos de ensino e levantamento empírico pudessem ser mostrados para o leitor. Caso contrário, o leitor pode achar que a mediação e a experiência social podem ser suficientes para o início da fala em uma criança autista. Porém, tais variáveis podem não ter agido sozinhas neste cenário.
No âmbito da educação escolar, o trabalho envolvendo estratégias voltadas para a comunicação e linguagem junto às crianças com TGD não tem por objetivo o implemento de metodologias estruturadas já existentes para este fim, pois tais metodologias são do campo terapêutico, para pessoas com autismo ou outros transtornos que afetam estas funções.
Mais uma afirmação vaga, subjetiva e tendenciosa. Não está claro de quais metodologias estão falando o que pode gerar dúvidas ao leitor. Nesta realidade, podemos arriscar citar o PECS e o TEACCH que ao que sugere, ainda que de forma velada, estão com interpretação indireta e equivocada pelos autores. Nenhum programa de comunicação alternativa ou de orientações visualmente mediadas podem ser vistos somente com fins terapêuticos. Por terminologia, o TEACCH visa desenvolver mecanismos educacionais facilitadores á aprendizagem da pessoa com autismo (Tratamento e Educação de crianças autistas e/ou com desordens comunicativas)|. Uma proposta como a do PECS envolve a aplicação do sistema comunicativo em todos os ambientes e considerando todas as pessoas e seu entorno. Portanto, não são práticas metodológicas exclusivamente do campo terapêutico.
Conclusão: O material analisado começa com uma apresentação interessante sobre os transtornos globais do desenvolvimento mostrando os critérios diagnósticos e sinais característicos. No entanto, ao discorrer sobre os demais tópicos, o documento poderia ter sido mais abrangente em termos do uso de referências bibliográficas que sustentem outras possibilidades de intervenção; poderia ter sido menos invasivo no fechamento de proposições como se fossem únicas verdades; poderia ter relacionado o conteúdo teórico com as possíveis aplicações no cotidiano escolar e seguramente deveria ter sido redigido com bases metodológicas mais abertas (citando autor/obra/data/idéia) no corpo do texto para que os leitores pudessem formar opiniões e relacionar as citações de forma mais objetiva.
Resgatando os objetivos iniciais, é possível concluir que o documento cumpriu com seus fins ao disponibilizar subsídios teóricos necessários à compreensão do transtorno autista mas foi insuficiente ao fazer tal abordagem numa perspectiva de interface prática com a educação. Deixou de citar metodologias tambémn cientificamente comprovadas como eficazes para fechar-se em um discurso reducionista e generalizado. Rejeita a proposta nacional do AEE para propor uma alternativa que, por um lado, ignora as necessidades educacionais especiais e particularidades do pensamento autista e por outro, atribui exclusivamente ao profissional a tarefa de instrumentalizar o educador de sala de aula pensando nestas diferenças.
Concordo com a idéia do modelo generalista, aquele que acaba deixando aspectos clínicos para a área da saúde. Concordo com os autores de que sala de aula não é lugar para terapia e, sobretudo, concordo que escola não é ambulatório. Desta forma, corroboro com a idéia de que para estes meninos, atendimentos fechados na “era clínica” estão ultrapassados, mas na mesma idéia, não posso deixar de expressar a minha angústia frente a sugestão de que o professor de sala de aula, somente com suas adequações, tomará pra si a responsabilidade de educar crianças com autismo. Como profissional da área, não posso deixar de questionar os processos relacionados á aplicação destes pressupostos e pergunto:
1. será que somente a intervenção do profissional do AEE sobre os professores da sala de aula será suficiente para o desenvolvimento dos alunos em seu percurso escolar?
2. Será que os cursos de formação de professores olharão para as possibilidades de adequação do material e oferecerão recursos para a prática do dia a dia?
3. Será que o profissional do AEE tomará para si o papel de prover o professor de sala de aula com recursos suficientes para o cumprimento dos objetivos citados neste documento?
4. Considerando que segundo esta proposta a criança com autismo não receberá apoio paralelo direto de profissionais especializados, permanecendo somente com o que acontecerá em sala de aula, é possível dizer que não haverá trabalho no contraturno conforme dispõe o Decreto 6571/2008?
Parabenizo o MEC pela iniciativa de divulgar um documento preocupado com o autismo nesta nova era, porém, não creio que este material ofereça subsídios para o professor de sala de aula em termos do uso prático das referências ali listadas. Para isso, seria necessário um documento ainda maior, com ênfase no currículo ,fundamentado na regulamentação nacional que pudesse agregar a participação de representantes das várias vertentes educacionais do país e especialistas em autismo, a fim de oferecer efetivamente subsídios ecléticos para a prática escolar desta população.
Referências bibliográficas usadas como apoio nesta análise:
Bosa, C. & Callias, M. (2000). Autismo: Breve revisão de diferentes abordagens. Vol. 13, n.º 1. Porto Alegre: Psicologia, Reflexão e Crítica.
Frith, U. (1992) Autism: Explaining the enigma. UK. Blackwell Pub
Goldstein, A.A. (2008). O Autismo sob o olhar da Terapia Ocupacional - um guia de orientação para pais. São Paulo. Summus.
Grandin, T. (1995) Thinking in Pictures. Vintage Press New York, NY
Mesibov, G., Shea, V. & Schopler, E. (2004). The TEACCH Approach to Autism Spectrum Disorders Plenum US
Nothbohm, E. & Zysk, V. (2010). 1001 Great Ideas for teaching & raising children with autism or asperger´s. Arlington, Texas. Future Horizons.
Peeters, T. (1998). Autismo: Entendimento Teórico e Intervenção Educacional. Rio de Janeiro: Cultura Médica.
Schopler, E., Lansing, M. & Waters, L.(1983). Teaching Activities for Autistic Children. Vol III. PROED Austin, Texas.
Schopler, E. & Mesibov, G.(1994). Behavioral Issues in Autism. New York: Plenum Press.
Small, L., Kontente, L.(2003). Everyday solutions: a practical guide for families of children with autism spectrum disorders. Hebert G. Birch Services.
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* Maria Elisa Granchi Fonseca. Psicóloga graduada pela PUCCAMP, Mestre em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos, Formação no Programa TEACCH pela Universidade da Carolina do Norte/USA, Especialista em Metodologia do Ensino Superior pela FEAP, Especialista em Arteterapia pelo NAPE São José dos Campos/SP, Coordenadora Geral do CEDAP da APAE de Pirassununga/SP, Professora universitária. Consultora na área do autismo
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