Aline tem todo o tempo do mundo
Como a vida de uma jovem tetraplégica moradora há oito anos de um hospital no Rio é suavizada pela internet e pelo carinho da equipe médica
MArtha Mendonça
ACONCHEGO
Aline com seu laptop na terapia intensiva do Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel, no Rio. A internet e o carinho da equipe médica como amparo em quase nove anos de imobilidade
Aline com seu laptop na terapia intensiva do Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel, no Rio. A internet e o carinho da equipe médica como amparo em quase nove anos de imobilidade
Na placa acima da cama, indicando que aquele é o leito 6, constam seu nome e a data de sua internação: 27 de fevereiro de 2001. A Seleção Brasileira ainda não era pentacampeã do mundo. As torres gêmeas ainda estavam de pé. Uma semana antes, incomodada com uma fortíssima dor de cabeça, Aline havia sido levada ao médico pela mãe. Depois de exames em outros dois hospitais, ela foi operada de emergência no Pedro Ernesto. Quando voltou a si, estava tetraplégica. E assim ela tem vivido desde então. Aos 26 anos, o hospital é sua casa, a equipe médica faz as vezes de família e o mundo exterior – aquele que ela não pode visitar – chega até Aline pela internet.
“É tudo muito devagar, mas eu tenho todo o tempo do mundo, né?”, diz ela, num sussurro modulado pelo aparelho de respiração. Há pouco mais de um ano, Aline descobriu a internet. Por meio de uma professora voluntária que a ajudou a desenvolver a leitura, ganhou um laptop com um programa específico para deficientes, cujos comandos obedecem ao estalar da língua. Para escrever, o cursor da tela se move pelas letras e, com um microfone, ela faz o estalo quando chega à que lhe interessa. Hoje ela usa e-mail, MSN e tem uma página no Orkut. Aline perde o amigo, mas não perde a piada. Seu bom humor impressiona. Ela faz careta para o fotógrafo enquanto fala da paixão pelo ator Márcio Garcia. “Não tem homem mais lindo no mundo. Pena que é casado”, afirma. Sua pequena baia no CTI é um oásis no meio das outras, de pacientes em coma, entubados, brigando com a morte. Ali tudo é colorido: a colcha felpuda cor-de-rosa, as almofadas de coração, os bichinhos de pelúcia. Fotografias da família e dos amigos na cortiça e nos porta-retratos. Aline nunca perdeu a vaidade: as enfermeiras a penteiam e maquiam, a seu pedido. Faz questão de ser depilada e nunca dispensa o perfume. Sua saída para o quarto nunca aconteceu porque ela precisa de atenção ininterrupta, e o hospital estadual só tem tal estrutura no CTI. Uma vez por semana ela pega sol no pátio, na cadeira de rodas.
As visitas da família são raras. A mãe, Regina, está desempregada. O pai, Manoel, faz bicos. “Para ir e voltar, gasto R$ 12”, diz Regina, de 47 anos, que está à procura de trabalho. Aline tem três irmãs, duas delas com filhos, que também aparecem pouco no hospital. “Sei que é caro eles virem até aqui. Mas acho que também é porque sofrem me vendo assim”, afirma. Em 2007, dias antes do Natal, amparada por um esquema da própria equipe do hospital, ela passou uma tarde na casa dos pais – aonde não ia havia quase sete anos. “Não me senti confortável”, diz. “Tinham feito obras, tudo estava diferente, me senti bem estranha de não saber o que acontece na casa onde eu morava.” A mãe também não conseguiu aproveitar a visita. “Foi um entra e sai, os vizinhos querendo vê-la. Eu tive medo de ela passar mal”, diz Regina. Aline não sabe se vai de novo. E nem se gostaria de voltar para lá definitivamente. Entre os motivos, o apego ao “pessoal do CTI”. Não é clichê dizer que eles são hoje sua família. Foram eles que deram tudo o que ela tem hoje: a decoração do quarto, o DVD, os cremes e os sabonetes cheirosos, o frigobar em que ela coloca as guloseimas – seu maior prazer. Além do mais puro afeto.
“Melhor amiga: Sônia.” Está escrito no Livro da Vida, ditado por Aline. Trata-se da enfermeira Sônia Regina de Souza, de 55 anos, 33 de enfermagem. Ela chegou ao CTI no mesmo momento que Aline, há nove anos. E construíram uma bela amizade. Aline encontrou uma ouvinte paciente e uma interlocutora nada paternalista. “Ela é esperta e exigente, sabe se impor, apesar de ser fisicamente dependente para tudo. Tem personalidade, opiniões e preferências”, diz.
Além da enfermeira, Aline tornou-se amiga da professora Lúcia Guimarães, que faz um programa de alfabetização nos hospitais estaduais do Rio de Janeiro. Em um dos últimos encontros, elas falaram sobre a diferença entre independência e autonomia. “Expliquei que autonomia é o reconhecimento dela como pessoa: alguém que tem vontade, desejo e se manifesta, se faz respeitar, apesar de estar presa a uma cama”, diz a professora. “Outro dia ela estava no computador e uma enfermeira quis que ela tomasse banho às 9 horas. Mas o horário da higiene é 11 horas. Ela pediu explicações. Como não havia, disse que não tomaria. E foi respeitada”, afirma. Foi Lúcia quem sugeriu o Livro da Vida, em que Aline fala de si, da tragédia que enfrenta, de seus sentimentos, de seus gostos e prazeres. “Cantora: Ivete Sangalo”, “Filme: Titanic”, “Cor predileta: vermelho”. É de vermelho que suas unhas estão pintadas quando ela diz que quer um dia conhecer “um rapaz sincero, amigo e companheiro, que tenha muito amor para dar, sem preconceito”. Todos os dias, ela repete para as enfermeiras, como um mantra: “Eu queria beijar na boca”.
As histórias mostram que o CTI virou uma gincana de realização dos desejos possíveis de Aline. No último aniversário, em 17 de junho, ela ganhou uma máquina fotográfica. No ano passado, foi um telefone celular, cuja conta é paga por uma médica. Ela escolhe temas para suas festinhas de aniversário. Na última, quis o Piu-Piu. Alguns desejos, porém, não são materiais. Há alguns meses, no horário de um de seus passeios ao pátio, começou a chover. Em vez de cancelar, ela pediu um banho de chuva. Conseguiu. Voltou com alegria redobrada. Não há quem faça uma visita sem trazer um doce ou salgadinho para a dona do leito 6 – mesmo com os muitos quilos a mais que ela ganhou nos anos de internação. Mimada por todos, ela aproveita para chamar a atenção. Outro dia disse a Sônia que iria ficar de pé. “Você vai ver, me ajuda que eu consigo”, afirmou. A enfermeira apenas sorriu e mudou de assunto.
APOIO
Alexandre Valente, Christiane Fialho (ao lado de Aline), Priscila Magalhães (na sequência) e Paula Lellis fazem parte da equipe de fisioterapeutas de Aline
Alexandre Valente, Christiane Fialho (ao lado de Aline), Priscila Magalhães (na sequência) e Paula Lellis fazem parte da equipe de fisioterapeutas de Aline
Noveleira, Aline tem devorado os capítulos de Viver a vida, de Manoel Carlos. Ela torce para que Luciana, a personagem de Alinne Moraes, volte a andar. Ao mesmo tempo, diz que, se isso acontecer, “é porque é novela”. A esperança da Aline da vida real é pequena, mas existe. É ela quem diz. “Um dia acho que ainda vou andar. Mas, na maioria das vezes, penso que isso é bobagem. Melhor viver o que dá para viver”, afirma. Sua coragem desconcerta.
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