De:
"Priscilla"
Adicionar remetente à lista de contatos Para:
autismo@yahoogrupos.com.br, aspergerbrasil@yahoogrupos.com.br
Epoca : *Oliver Sacks ao câncer: "Leve meu olho, mas me deixe"*
Em seu novo livro, o neurologista inglês conta como lidou com o melanoma que
lhe cegou o olho direito
O médico britânico Oliver Sacks, de 77 anos, ficou conhecido por descrever
casos muito peculiares de alguns de seus pacientes em livros como *
Enxaqueca* e *O homem que confundiu sua mulher com um chapéu*. Além de
explicar de maneira acessível essas raras condições neurológicas, Sacks
relata como essas pessoas conseguiram, de alguma maneira, superar as
limitações trazidas pelas doenças. Em sua nova obra, *O olhar da
mente*(Companhia das Letras), o neurologista inglês conta histórias de
pacientes
que enfrentaram alguma dificuldade para ver. Uma pianista que perde a
capacidade de ler as partituras e um escritor que não consegue ler, mas
continua escrevendo, são duas delas. A diferença é que, neste livro, Sacks
deixa o lugar do médico e relata as suas próprias dificuldades desde que,
por causa de um melanoma, perdeu a visão do olho direito. Nesta entrevista,
o médico conta o que mudou em sua vida após a doença e reflete sobre a
capacidade de adaptação dos seres humanos.
ÉPOCA - *Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre a visão?*
*Oliver Sacks -* Meu interesse pelo tema surgiu na infância. Por causa do
gosto pela fotografia - em cores, de cenas paradas ou em movimento - comecei
a me perguntar como enxergamos. Além disso, ainda criança, tive alterações
de visão decorrentes da enxaqueca. Por alguns minutos, perdia a noção de
cor, movimento ou profundidade, via coisas distorcidas, às vezes pela
metade. Isso me levou a escrever meu primeiro livro, *Enxaqueca*. Em *O
homem que confundiu sua mulher com um chapéu* volto a falar da inabilidade
de reconhecer coisas. É um tema antigo, mas que continua me estimulando a
conhecer pessoas, escutá-las e a aprender sobre certos fenômenos, como
perder a capacidade de ler ou de ver em três dimensões. Esses problemas são
janelas para entender como a mente funciona.
ÉPOCA - *O seu livro, de certa maneira, nos ajuda a entender a perspectiva
de outras pessoas.*
*Sacks -* Como não podemos transmitir nossas percepções diretamente,
precisamos usar outros meios, como a linguagem, o futebol, a pintura, para
imaginar o estado emocional de outras pessoas. Todos conseguimos apreciar
Shakespeare e podemos imaginar como é estar na pele de um de seus
personagens. Todos estamos isolados de certa maneira, mas nos comunicamos.
ÉPOCA - *Os seus livros costumam mostrar histórias de superação mas, neste,
o senhor também fala das perdas. Por quê?*
*Sacks -* Mostro que não há como passar por cima da dor e da perda. No
capítulo em que falo da minha doença, às vezes mostro minha tristeza, sinto
autopiedade. Ponderei se deveria incluir isso na versão final do texto e
cheguei à conclusão de que era o mais honesto a fazer: contar tudo. O
momento em que senti pena de mim mesmo, o que achei que ia morrer ou que ia
ficar cego. Há momentos também em que consigo narrar minha história de
maneira desapegada.
ÉPOCA - *Neste livro, o senhor conta a história de uma pianista que, de
repente, perde a habilidade de ler as partituras, mas consegue recuperar a
capacidade de tocar. Como é possível superar esse tipo de limitação?*
*Sacks -* A superação ocorre quando o cérebro encontra outros meios de fazer
a mesma tarefa. Quando um caminho se perde, outros tendem a se tornar mais
fortes. É um processo em partes automático e em partes voluntário. Essa
pianista começou a ouvir com mais e mais atenção porque era sua única chance
de continuar na música.
ÉPOCA - *Alguns críticos o acusam de explorar a desgraça de seus pacientes
em seus livros.*
*Sacks -* O que exploro é como as pessoas sobrevivem às desgraças,
particularmente a um problema neurológico, e não a desgraça desses
pacientes. Sempre escrevo com respeito, simpatia e preocupação e peço
autorização ao paciente e à família. Não apenas uma autorização formal.
Quero ter certeza de que o paciente vai se sentir bem. Como neurologista,
recebo pacientes com infortúnios neurológicos. Mas sinto que podemos
aprender muito com isso. As descrições do problema de um paciente meu podem
soar familiares para outras pessoas, que podem se sentir confortadas se as
histórias mostrarem as adaptações, a resiliência. Escrevo, em parte, para
dizer que não é o fim do mundo.
ÉPOCA - *Era essa a intenção quando o senhor começou a escrever?*
*Sacks -* Não sei qual era a minha intenção. Escrevo muito. Para mim,
escrever é uma forma de pensar, de clarear e organizar as experiências.
Mesmo quando atendo um paciente e não vou publicar nada, escrevo descrições
longas sobre ele. Acumulei dezenas de milhares desses textos nos últimos 50
anos. Quando escrevi meu primeiro livro, *Enxaqueca*, sabia que existiam
milhões de pessoas com o problema. Então, se eu descrevesse o que acontecia
com meus pacientes, suas experiências, seu tratamento e como se ajustaram,
talvez as histórias pudessem significar algo para outras pessoas. Quero
comunicar experiências, estimular reflexão. De certa maneira, estou numa
posição privilegiada: as pessoas vêm até mim com seus problemas e sua vida e
quero dividir um pouco disso porque me parece apropriado.
ÉPOCA - *Escrever sobre a síndrome de Tourette (transtorno que leva as
pessoas a fazer movimentos repetitivos e involuntários), como o senhor já
fez, pode ajudar os pacientes?
Sacks -* A vida pode ser especialmente difícil para pessoas com síndrome de
Tourette porque os outros não as entendem. Podem ser alvos de piadas e
agressões na escola. Talvez eu tenha ajudado a apresentar a síndrome ao
público e isso tenha gerado uma espécie de entendimento, de empatia, que
torna mais fácil a vida dessas pessoas. De maneira semelhante, com este
livro espero esclarecer o que é prosopagnosia, também chamada de "cegueira
para feições", um problema desconhecido do público em geral, mas que afeta
milhões de pessoas.
ÉPOCA - *Quando o senhor percebeu que sua dificuldade para reconhecer a
fisionomia das pessoas poderia ser um problema neurológico?*
*Sacks -* Quando tinha 13 ou 14 anos e fui para uma escola onde estudavam
600 garotos. Antes frequentava uma escola pequena, onde acabava conhecendo
as pessoas, mais cedo ou mais tarde. Com tantos rostos estranhos na nova
escola, fiquei profundamente confuso. Me perguntei se era algo psicológico
ou neurológico. Anos depois, quando já era médico e tinha 52 anos, fui para
a Austrália visitar meu irmão, que mora lá desde 1950. Foi então que percebi
que ele tinha o mesmo problema para reconhecer as pessoas e até o seu
próprio reflexo no espelho. Não poderia ser uma coincidência. Tinha que ser
uma condição neurológica da nossa família, com uma causa genética, orgânica.
ÉPOCA - *A prosopagnosia é um problema congênico?*
*Sacks -* Na maioria das vezes, as pessoas têm o problema desde que
nasceram. Mas, ontem, por exemplo, recebi a carta de uma mulher que teve um
AVC hemorrágico que afetou partes do cérebro ligadas à visão. Quando ela se
recuperou, percebeu que não conseguia reconhecer rostos novos nem se
localizar dentro de um prédio. É um exemplo de como um dano numa área
particular do cérebro pode levar à propagnosia. Em geral, as pessoas com o
problema acusam a si mesmas ou são acusadas de ser desatentas, descuidadas.
Mas a habilidade de reconhecer feições costuma ser automática: quem é bom
nisso não presta mais atenção. É um problema complexo.
ÉPOCA - *Seus livros trazem casos de adaptação. O que determina a capacidade
de superação de uma pessoa?*
*Sacks -* Depende do cérebro da pessoa e de sua plasticidade e, na mesma
medida, das motivações, desejos e oportunidades que ela tem. Mas nem tudo
pode ser compensado. Menciono em meu livro que algumas pessoas, inclusive
eu, são muito ruins em reconhecer a fisionomia das pessoas. Podemos tentar
compensar prestando mais atenção a outras coisas, como o modo de vestir, de
se mover, a voz, mas o reconhecimento facial em si não melhora. De maneira
semelhante, descubro e descrevo no livro que deixar de enxergar com um olho
faz você perder a visão bidimensional. Não derrubo mais vinho no colo das
pessoas nem erro os degraus da escada. Estou compensando usando mais o outro
olho. Mas isso não muda o fato de que perdi minha visão.
ÉPOCA - *Como está sua vida depois do câncer?*
*Sacks -* Perdi a visão do olho direito há mais de um ano. Tinha esperanças
de voltar a enxergar, mas isso não aconteceu. Adaptei-me até certo ponto,
embora conte no livro que isso me causou problemas. Uso uma espécie de
bengala para andar porque não consigo julgar a profundidade dos degraus ou
as saliências no chão. Em geral, não penso no câncer ou em uma reincidência,
mas menciono no livro que quando tive mancha preta na pele, fiquei muito
hipocondríaco de repente, pensei que fosse o câncer de novo.. Há um
nervosismo latente. Mas tenho 77 anos de idade e não espero viver para
sempre. Espero não desenvolver Alzheimer ou algo do gênero e ter força e
energia necessários para continuar atendendo pacientes e escrevendo. Já
escrevi a maior parte do próximo livro. Brinco que fiz uma oferta ao câncer.
Disse: "OK, leve o meu olho, se você insiste, mas me deixe." Até agora,
parece que é o que o câncer está fazendo. Espero que ele mantenha o acordo.
ÉPOCA - *Como ter um câncer alterou a sua visão sobre os seus pacientes?*
*Sacks -* A doença aumentou minha empatia pelas pessoas. Não só pelos seus
sintomas neurológicos, mas por seu medo e sua coragem. Porque uma doença
nunca é só neurológica. É emocional, é humana, afeta a família, a sociedade.
Espero ter me tornado mais compreensivo.
ÉPOCA - *Depois da doença, o senhor concorda com o ditado que diz que os
médicos são os piores pacientes?*
*Sacks -* Talvez seja assim porque médico está acostumado a ter o controle,
enquanto o paciente é passivo. Mas dedico o meu livro ao médico que cuidou
do meu olho. Nós gostamos um do outro, embora ainda tenhamos uma relação
totalmente profissional. Quando penso nele, não penso "David", mas "doutor
Abramson". Nossa relação formal de médico e paciente foi mantida. Acho
perigoso para os médicos tratarem de si próprios. Diagnosticar-se a si mesmo
é como diagnosticar amigos: pode afetar o julgamento profissional.
ÉPOCA - *Seu pai e sua mãe eram médicos. Como isso influenciou sua escolha?*
*Sacks -* No começo, não queria ser médico. Gostava de química e biologia e
pensei em ser biólogo marinho. Então, decidi ser um fisiologista trabalhando
em um laboratório, não um médico com pacientes. Cheguei a pensar também em
escrever. Hoje sou médico e escritor. Falei certa vez com um gênio da
matemática que me contou sobre a filha dele, que era uma ótima matemática,
mas odiava a matéria. Pergunto-me por que isso acontece. Talvez a explicação
seja que ela vê o pai tão obcecado com matemática que quer fazer qualquer
coisa menos isso, mesmo que tenha uma mente matemática. Uma parte da pessoa
segue os pais enquanto outra parte foge.
ÉPOCA - *Numa entrevista recente, o senhor contou que a sua mãe lhe deu um
feto para dissecar ainda criança e convidou-o para a autópsia de um garoto
de 14 anos quando o senhor tinha 14 anos. Isso alterou a sua maneira de ver
a medicina?*
*Sacks -* Menciono esses episódios no livro *Tio Tungstênio*. Fiquei com
medo, mas minha mãe não fez isso para aterrorizar. Ela amava o trabalho
dela, amava anatomia, queria que eu gostasse também, e não ocorreu a ela que
eu era jovem demais. Talvez tenha a ver também com o fato de minha família
ter muitos médicos e estarmos nos anos 1940. Fato é que não sou muito bom de
anatomia. Meus "olhos da mente" não são muito bons e não consigo imaginar
como as coisas são.
ÉPOCA - *O senhor recentemente disse que envelhecer é uma espécie de doença.
Por quê?*
*Sacks -* Embora o envelhecimento traga experiências mais profundas e
conhecimento - como espero tenha trazido para mim e outras pessoas que
envelheceram -, não há dúvida de que a saúde não é mais a mesma. Quando fico
doente, não saro tão rápido. Não tenho interesse pela imortalidade, mas pela
qualidade de vida. Talvez envelhecer seja uma doença. Não uma que possa ser
curada, mas com a qual podemos conviver. Mas, tendo dito isso, quero dizer
que tenho muitos amigos felizes e criativos vinte anos mais velhos do que
eu. Meu pai viveu até os 95 e era bastante ativo, via pacientes e nadava
todos os dias até a sua morte. Se conseguir fazer o mesmo, terei tido muita
sorte.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI189034-15220,00-OLIVER+SACKS+AO+CANCER+LEVE+MEU+OLHO+MAS+ME+DEIXE.html
Em seu novo livro, o neurologista inglês conta como lidou com o melanoma que
lhe cegou o olho direito
O médico britânico Oliver Sacks, de 77 anos, ficou conhecido por descrever
casos muito peculiares de alguns de seus pacientes em livros como *
Enxaqueca* e *O homem que confundiu sua mulher com um chapéu*. Além de
explicar de maneira acessível essas raras condições neurológicas, Sacks
relata como essas pessoas conseguiram, de alguma maneira, superar as
limitações trazidas pelas doenças. Em sua nova obra, *O olhar da
mente*(Companhia das Letras), o neurologista inglês conta histórias de
pacientes
que enfrentaram alguma dificuldade para ver. Uma pianista que perde a
capacidade de ler as partituras e um escritor que não consegue ler, mas
continua escrevendo, são duas delas. A diferença é que, neste livro, Sacks
deixa o lugar do médico e relata as suas próprias dificuldades desde que,
por causa de um melanoma, perdeu a visão do olho direito. Nesta entrevista,
o médico conta o que mudou em sua vida após a doença e reflete sobre a
capacidade de adaptação dos seres humanos.
ÉPOCA - *Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre a visão?*
*Oliver Sacks -* Meu interesse pelo tema surgiu na infância. Por causa do
gosto pela fotografia - em cores, de cenas paradas ou em movimento - comecei
a me perguntar como enxergamos. Além disso, ainda criança, tive alterações
de visão decorrentes da enxaqueca. Por alguns minutos, perdia a noção de
cor, movimento ou profundidade, via coisas distorcidas, às vezes pela
metade. Isso me levou a escrever meu primeiro livro, *Enxaqueca*. Em *O
homem que confundiu sua mulher com um chapéu* volto a falar da inabilidade
de reconhecer coisas. É um tema antigo, mas que continua me estimulando a
conhecer pessoas, escutá-las e a aprender sobre certos fenômenos, como
perder a capacidade de ler ou de ver em três dimensões. Esses problemas são
janelas para entender como a mente funciona.
ÉPOCA - *O seu livro, de certa maneira, nos ajuda a entender a perspectiva
de outras pessoas.*
*Sacks -* Como não podemos transmitir nossas percepções diretamente,
precisamos usar outros meios, como a linguagem, o futebol, a pintura, para
imaginar o estado emocional de outras pessoas. Todos conseguimos apreciar
Shakespeare e podemos imaginar como é estar na pele de um de seus
personagens. Todos estamos isolados de certa maneira, mas nos comunicamos.
ÉPOCA - *Os seus livros costumam mostrar histórias de superação mas, neste,
o senhor também fala das perdas. Por quê?*
*Sacks -* Mostro que não há como passar por cima da dor e da perda. No
capítulo em que falo da minha doença, às vezes mostro minha tristeza, sinto
autopiedade. Ponderei se deveria incluir isso na versão final do texto e
cheguei à conclusão de que era o mais honesto a fazer: contar tudo. O
momento em que senti pena de mim mesmo, o que achei que ia morrer ou que ia
ficar cego. Há momentos também em que consigo narrar minha história de
maneira desapegada.
ÉPOCA - *Neste livro, o senhor conta a história de uma pianista que, de
repente, perde a habilidade de ler as partituras, mas consegue recuperar a
capacidade de tocar. Como é possível superar esse tipo de limitação?*
*Sacks -* A superação ocorre quando o cérebro encontra outros meios de fazer
a mesma tarefa. Quando um caminho se perde, outros tendem a se tornar mais
fortes. É um processo em partes automático e em partes voluntário. Essa
pianista começou a ouvir com mais e mais atenção porque era sua única chance
de continuar na música.
ÉPOCA - *Alguns críticos o acusam de explorar a desgraça de seus pacientes
em seus livros.*
*Sacks -* O que exploro é como as pessoas sobrevivem às desgraças,
particularmente a um problema neurológico, e não a desgraça desses
pacientes. Sempre escrevo com respeito, simpatia e preocupação e peço
autorização ao paciente e à família. Não apenas uma autorização formal.
Quero ter certeza de que o paciente vai se sentir bem. Como neurologista,
recebo pacientes com infortúnios neurológicos. Mas sinto que podemos
aprender muito com isso. As descrições do problema de um paciente meu podem
soar familiares para outras pessoas, que podem se sentir confortadas se as
histórias mostrarem as adaptações, a resiliência. Escrevo, em parte, para
dizer que não é o fim do mundo.
ÉPOCA - *Era essa a intenção quando o senhor começou a escrever?*
*Sacks -* Não sei qual era a minha intenção. Escrevo muito. Para mim,
escrever é uma forma de pensar, de clarear e organizar as experiências.
Mesmo quando atendo um paciente e não vou publicar nada, escrevo descrições
longas sobre ele. Acumulei dezenas de milhares desses textos nos últimos 50
anos. Quando escrevi meu primeiro livro, *Enxaqueca*, sabia que existiam
milhões de pessoas com o problema. Então, se eu descrevesse o que acontecia
com meus pacientes, suas experiências, seu tratamento e como se ajustaram,
talvez as histórias pudessem significar algo para outras pessoas. Quero
comunicar experiências, estimular reflexão. De certa maneira, estou numa
posição privilegiada: as pessoas vêm até mim com seus problemas e sua vida e
quero dividir um pouco disso porque me parece apropriado.
ÉPOCA - *Escrever sobre a síndrome de Tourette (transtorno que leva as
pessoas a fazer movimentos repetitivos e involuntários), como o senhor já
fez, pode ajudar os pacientes?
Sacks -* A vida pode ser especialmente difícil para pessoas com síndrome de
Tourette porque os outros não as entendem. Podem ser alvos de piadas e
agressões na escola. Talvez eu tenha ajudado a apresentar a síndrome ao
público e isso tenha gerado uma espécie de entendimento, de empatia, que
torna mais fácil a vida dessas pessoas. De maneira semelhante, com este
livro espero esclarecer o que é prosopagnosia, também chamada de "cegueira
para feições", um problema desconhecido do público em geral, mas que afeta
milhões de pessoas.
ÉPOCA - *Quando o senhor percebeu que sua dificuldade para reconhecer a
fisionomia das pessoas poderia ser um problema neurológico?*
*Sacks -* Quando tinha 13 ou 14 anos e fui para uma escola onde estudavam
600 garotos. Antes frequentava uma escola pequena, onde acabava conhecendo
as pessoas, mais cedo ou mais tarde. Com tantos rostos estranhos na nova
escola, fiquei profundamente confuso. Me perguntei se era algo psicológico
ou neurológico. Anos depois, quando já era médico e tinha 52 anos, fui para
a Austrália visitar meu irmão, que mora lá desde 1950. Foi então que percebi
que ele tinha o mesmo problema para reconhecer as pessoas e até o seu
próprio reflexo no espelho. Não poderia ser uma coincidência. Tinha que ser
uma condição neurológica da nossa família, com uma causa genética, orgânica.
ÉPOCA - *A prosopagnosia é um problema congênico?*
*Sacks -* Na maioria das vezes, as pessoas têm o problema desde que
nasceram. Mas, ontem, por exemplo, recebi a carta de uma mulher que teve um
AVC hemorrágico que afetou partes do cérebro ligadas à visão. Quando ela se
recuperou, percebeu que não conseguia reconhecer rostos novos nem se
localizar dentro de um prédio. É um exemplo de como um dano numa área
particular do cérebro pode levar à propagnosia. Em geral, as pessoas com o
problema acusam a si mesmas ou são acusadas de ser desatentas, descuidadas.
Mas a habilidade de reconhecer feições costuma ser automática: quem é bom
nisso não presta mais atenção. É um problema complexo.
ÉPOCA - *Seus livros trazem casos de adaptação. O que determina a capacidade
de superação de uma pessoa?*
*Sacks -* Depende do cérebro da pessoa e de sua plasticidade e, na mesma
medida, das motivações, desejos e oportunidades que ela tem. Mas nem tudo
pode ser compensado. Menciono em meu livro que algumas pessoas, inclusive
eu, são muito ruins em reconhecer a fisionomia das pessoas. Podemos tentar
compensar prestando mais atenção a outras coisas, como o modo de vestir, de
se mover, a voz, mas o reconhecimento facial em si não melhora. De maneira
semelhante, descubro e descrevo no livro que deixar de enxergar com um olho
faz você perder a visão bidimensional. Não derrubo mais vinho no colo das
pessoas nem erro os degraus da escada. Estou compensando usando mais o outro
olho. Mas isso não muda o fato de que perdi minha visão.
ÉPOCA - *Como está sua vida depois do câncer?*
*Sacks -* Perdi a visão do olho direito há mais de um ano. Tinha esperanças
de voltar a enxergar, mas isso não aconteceu. Adaptei-me até certo ponto,
embora conte no livro que isso me causou problemas. Uso uma espécie de
bengala para andar porque não consigo julgar a profundidade dos degraus ou
as saliências no chão. Em geral, não penso no câncer ou em uma reincidência,
mas menciono no livro que quando tive mancha preta na pele, fiquei muito
hipocondríaco de repente, pensei que fosse o câncer de novo.. Há um
nervosismo latente. Mas tenho 77 anos de idade e não espero viver para
sempre. Espero não desenvolver Alzheimer ou algo do gênero e ter força e
energia necessários para continuar atendendo pacientes e escrevendo. Já
escrevi a maior parte do próximo livro. Brinco que fiz uma oferta ao câncer.
Disse: "OK, leve o meu olho, se você insiste, mas me deixe." Até agora,
parece que é o que o câncer está fazendo. Espero que ele mantenha o acordo.
ÉPOCA - *Como ter um câncer alterou a sua visão sobre os seus pacientes?*
*Sacks -* A doença aumentou minha empatia pelas pessoas. Não só pelos seus
sintomas neurológicos, mas por seu medo e sua coragem. Porque uma doença
nunca é só neurológica. É emocional, é humana, afeta a família, a sociedade.
Espero ter me tornado mais compreensivo.
ÉPOCA - *Depois da doença, o senhor concorda com o ditado que diz que os
médicos são os piores pacientes?*
*Sacks -* Talvez seja assim porque médico está acostumado a ter o controle,
enquanto o paciente é passivo. Mas dedico o meu livro ao médico que cuidou
do meu olho. Nós gostamos um do outro, embora ainda tenhamos uma relação
totalmente profissional. Quando penso nele, não penso "David", mas "doutor
Abramson". Nossa relação formal de médico e paciente foi mantida. Acho
perigoso para os médicos tratarem de si próprios. Diagnosticar-se a si mesmo
é como diagnosticar amigos: pode afetar o julgamento profissional.
ÉPOCA - *Seu pai e sua mãe eram médicos. Como isso influenciou sua escolha?*
*Sacks -* No começo, não queria ser médico. Gostava de química e biologia e
pensei em ser biólogo marinho. Então, decidi ser um fisiologista trabalhando
em um laboratório, não um médico com pacientes. Cheguei a pensar também em
escrever. Hoje sou médico e escritor. Falei certa vez com um gênio da
matemática que me contou sobre a filha dele, que era uma ótima matemática,
mas odiava a matéria. Pergunto-me por que isso acontece. Talvez a explicação
seja que ela vê o pai tão obcecado com matemática que quer fazer qualquer
coisa menos isso, mesmo que tenha uma mente matemática. Uma parte da pessoa
segue os pais enquanto outra parte foge.
ÉPOCA - *Numa entrevista recente, o senhor contou que a sua mãe lhe deu um
feto para dissecar ainda criança e convidou-o para a autópsia de um garoto
de 14 anos quando o senhor tinha 14 anos. Isso alterou a sua maneira de ver
a medicina?*
*Sacks -* Menciono esses episódios no livro *Tio Tungstênio*. Fiquei com
medo, mas minha mãe não fez isso para aterrorizar. Ela amava o trabalho
dela, amava anatomia, queria que eu gostasse também, e não ocorreu a ela que
eu era jovem demais. Talvez tenha a ver também com o fato de minha família
ter muitos médicos e estarmos nos anos 1940. Fato é que não sou muito bom de
anatomia. Meus "olhos da mente" não são muito bons e não consigo imaginar
como as coisas são.
ÉPOCA - *O senhor recentemente disse que envelhecer é uma espécie de doença.
Por quê?*
*Sacks -* Embora o envelhecimento traga experiências mais profundas e
conhecimento - como espero tenha trazido para mim e outras pessoas que
envelheceram -, não há dúvida de que a saúde não é mais a mesma. Quando fico
doente, não saro tão rápido. Não tenho interesse pela imortalidade, mas pela
qualidade de vida. Talvez envelhecer seja uma doença. Não uma que possa ser
curada, mas com a qual podemos conviver. Mas, tendo dito isso, quero dizer
que tenho muitos amigos felizes e criativos vinte anos mais velhos do que
eu. Meu pai viveu até os 95 e era bastante ativo, via pacientes e nadava
todos os dias até a sua morte. Se conseguir fazer o mesmo, terei tido muita
sorte.
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI189034-15220,00-OLIVER+SACKS+AO+CANCER+LEVE+MEU+OLHO+MAS+ME+DEIXE.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário