Epoca : *Oliver Sacks ao câncer: "Leve meu olho, mas me deixe"*

Em seu novo livro, o neurologista inglês conta como lidou com o melanoma que

lhe cegou o olho direito

O médico britânico Oliver Sacks, de 77 anos, ficou conhecido por descrever

casos muito peculiares de alguns de seus pacientes em livros como *

Enxaqueca* e *O homem que confundiu sua mulher com um chapéu*. Além de

explicar de maneira acessível essas raras condições neurológicas, Sacks

relata como essas pessoas conseguiram, de alguma maneira, superar as

limitações trazidas pelas doenças. Em sua nova obra, *O olhar da

mente*(Companhia das Letras), o neurologista inglês conta histórias de

pacientes

que enfrentaram alguma dificuldade para ver. Uma pianista que perde a

capacidade de ler as partituras e um escritor que não consegue ler, mas

continua escrevendo, são duas delas. A diferença é que, neste livro, Sacks

deixa o lugar do médico e relata as suas próprias dificuldades desde que,

por causa de um melanoma, perdeu a visão do olho direito. Nesta entrevista,

o médico conta o que mudou em sua vida após a doença e reflete sobre a

capacidade de adaptação dos seres humanos.

ÉPOCA - *Por que o senhor decidiu escrever um livro sobre a visão?*

*Oliver Sacks -* Meu interesse pelo tema surgiu na infância. Por causa do

gosto pela fotografia - em cores, de cenas paradas ou em movimento - comecei

a me perguntar como enxergamos. Além disso, ainda criança, tive alterações

de visão decorrentes da enxaqueca. Por alguns minutos, perdia a noção de

cor, movimento ou profundidade, via coisas distorcidas, às vezes pela

metade. Isso me levou a escrever meu primeiro livro, *Enxaqueca*. Em *O

homem que confundiu sua mulher com um chapéu* volto a falar da inabilidade

de reconhecer coisas. É um tema antigo, mas que continua me estimulando a

conhecer pessoas, escutá-las e a aprender sobre certos fenômenos, como

perder a capacidade de ler ou de ver em três dimensões. Esses problemas são

janelas para entender como a mente funciona.

ÉPOCA - *O seu livro, de certa maneira, nos ajuda a entender a perspectiva

de outras pessoas.*

*Sacks -* Como não podemos transmitir nossas percepções diretamente,

precisamos usar outros meios, como a linguagem, o futebol, a pintura, para

imaginar o estado emocional de outras pessoas. Todos conseguimos apreciar

Shakespeare e podemos imaginar como é estar na pele de um de seus

personagens. Todos estamos isolados de certa maneira, mas nos comunicamos.

ÉPOCA - *Os seus livros costumam mostrar histórias de superação mas, neste,

o senhor também fala das perdas. Por quê?*

*Sacks -* Mostro que não há como passar por cima da dor e da perda. No

capítulo em que falo da minha doença, às vezes mostro minha tristeza, sinto

autopiedade. Ponderei se deveria incluir isso na versão final do texto e

cheguei à conclusão de que era o mais honesto a fazer: contar tudo. O

momento em que senti pena de mim mesmo, o que achei que ia morrer ou que ia

ficar cego. Há momentos também em que consigo narrar minha história de

maneira desapegada.

ÉPOCA - *Neste livro, o senhor conta a história de uma pianista que, de

repente, perde a habilidade de ler as partituras, mas consegue recuperar a

capacidade de tocar. Como é possível superar esse tipo de limitação?*

*Sacks -* A superação ocorre quando o cérebro encontra outros meios de fazer

a mesma tarefa. Quando um caminho se perde, outros tendem a se tornar mais

fortes. É um processo em partes automático e em partes voluntário. Essa

pianista começou a ouvir com mais e mais atenção porque era sua única chance

de continuar na música.

ÉPOCA - *Alguns críticos o acusam de explorar a desgraça de seus pacientes

em seus livros.*

*Sacks -* O que exploro é como as pessoas sobrevivem às desgraças,

particularmente a um problema neurológico, e não a desgraça desses

pacientes. Sempre escrevo com respeito, simpatia e preocupação e peço

autorização ao paciente e à família. Não apenas uma autorização formal.

Quero ter certeza de que o paciente vai se sentir bem. Como neurologista,

recebo pacientes com infortúnios neurológicos. Mas sinto que podemos

aprender muito com isso. As descrições do problema de um paciente meu podem

soar familiares para outras pessoas, que podem se sentir confortadas se as

histórias mostrarem as adaptações, a resiliência. Escrevo, em parte, para

dizer que não é o fim do mundo.

ÉPOCA - *Era essa a intenção quando o senhor começou a escrever?*

*Sacks -* Não sei qual era a minha intenção. Escrevo muito. Para mim,

escrever é uma forma de pensar, de clarear e organizar as experiências.

Mesmo quando atendo um paciente e não vou publicar nada, escrevo descrições

longas sobre ele. Acumulei dezenas de milhares desses textos nos últimos 50

anos. Quando escrevi meu primeiro livro, *Enxaqueca*, sabia que existiam

milhões de pessoas com o problema. Então, se eu descrevesse o que acontecia

com meus pacientes, suas experiências, seu tratamento e como se ajustaram,

talvez as histórias pudessem significar algo para outras pessoas. Quero

comunicar experiências, estimular reflexão. De certa maneira, estou numa

posição privilegiada: as pessoas vêm até mim com seus problemas e sua vida e

quero dividir um pouco disso porque me parece apropriado.

ÉPOCA - *Escrever sobre a síndrome de Tourette (transtorno que leva as

pessoas a fazer movimentos repetitivos e involuntários), como o senhor já

fez, pode ajudar os pacientes?

Sacks -* A vida pode ser especialmente difícil para pessoas com síndrome de

Tourette porque os outros não as entendem. Podem ser alvos de piadas e

agressões na escola. Talvez eu tenha ajudado a apresentar a síndrome ao

público e isso tenha gerado uma espécie de entendimento, de empatia, que

torna mais fácil a vida dessas pessoas. De maneira semelhante, com este

livro espero esclarecer o que é prosopagnosia, também chamada de "cegueira

para feições", um problema desconhecido do público em geral, mas que afeta

milhões de pessoas.

ÉPOCA - *Quando o senhor percebeu que sua dificuldade para reconhecer a

fisionomia das pessoas poderia ser um problema neurológico?*

*Sacks -* Quando tinha 13 ou 14 anos e fui para uma escola onde estudavam

600 garotos. Antes frequentava uma escola pequena, onde acabava conhecendo

as pessoas, mais cedo ou mais tarde. Com tantos rostos estranhos na nova

escola, fiquei profundamente confuso. Me perguntei se era algo psicológico

ou neurológico. Anos depois, quando já era médico e tinha 52 anos, fui para

a Austrália visitar meu irmão, que mora lá desde 1950. Foi então que percebi

que ele tinha o mesmo problema para reconhecer as pessoas e até o seu

próprio reflexo no espelho. Não poderia ser uma coincidência. Tinha que ser

uma condição neurológica da nossa família, com uma causa genética, orgânica.

ÉPOCA - *A prosopagnosia é um problema congênico?*

*Sacks -* Na maioria das vezes, as pessoas têm o problema desde que

nasceram. Mas, ontem, por exemplo, recebi a carta de uma mulher que teve um

AVC hemorrágico que afetou partes do cérebro ligadas à visão. Quando ela se

recuperou, percebeu que não conseguia reconhecer rostos novos nem se

localizar dentro de um prédio. É um exemplo de como um dano numa área

particular do cérebro pode levar à propagnosia. Em geral, as pessoas com o

problema acusam a si mesmas ou são acusadas de ser desatentas, descuidadas.

Mas a habilidade de reconhecer feições costuma ser automática: quem é bom

nisso não presta mais atenção. É um problema complexo.

ÉPOCA - *Seus livros trazem casos de adaptação. O que determina a capacidade

de superação de uma pessoa?*

*Sacks -* Depende do cérebro da pessoa e de sua plasticidade e, na mesma

medida, das motivações, desejos e oportunidades que ela tem. Mas nem tudo

pode ser compensado. Menciono em meu livro que algumas pessoas, inclusive

eu, são muito ruins em reconhecer a fisionomia das pessoas. Podemos tentar

compensar prestando mais atenção a outras coisas, como o modo de vestir, de

se mover, a voz, mas o reconhecimento facial em si não melhora. De maneira

semelhante, descubro e descrevo no livro que deixar de enxergar com um olho

faz você perder a visão bidimensional. Não derrubo mais vinho no colo das

pessoas nem erro os degraus da escada. Estou compensando usando mais o outro

olho. Mas isso não muda o fato de que perdi minha visão.

ÉPOCA - *Como está sua vida depois do câncer?*

*Sacks -* Perdi a visão do olho direito há mais de um ano. Tinha esperanças

de voltar a enxergar, mas isso não aconteceu. Adaptei-me até certo ponto,

embora conte no livro que isso me causou problemas. Uso uma espécie de

bengala para andar porque não consigo julgar a profundidade dos degraus ou

as saliências no chão. Em geral, não penso no câncer ou em uma reincidência,

mas menciono no livro que quando tive mancha preta na pele, fiquei muito

hipocondríaco de repente, pensei que fosse o câncer de novo.. Há um

nervosismo latente. Mas tenho 77 anos de idade e não espero viver para

sempre. Espero não desenvolver Alzheimer ou algo do gênero e ter força e

energia necessários para continuar atendendo pacientes e escrevendo. Já

escrevi a maior parte do próximo livro. Brinco que fiz uma oferta ao câncer.

Disse: "OK, leve o meu olho, se você insiste, mas me deixe." Até agora,

parece que é o que o câncer está fazendo. Espero que ele mantenha o acordo.

ÉPOCA - *Como ter um câncer alterou a sua visão sobre os seus pacientes?*

*Sacks -* A doença aumentou minha empatia pelas pessoas. Não só pelos seus

sintomas neurológicos, mas por seu medo e sua coragem. Porque uma doença

nunca é só neurológica. É emocional, é humana, afeta a família, a sociedade.

Espero ter me tornado mais compreensivo.

ÉPOCA - *Depois da doença, o senhor concorda com o ditado que diz que os

médicos são os piores pacientes?*

*Sacks -* Talvez seja assim porque médico está acostumado a ter o controle,

enquanto o paciente é passivo. Mas dedico o meu livro ao médico que cuidou

do meu olho. Nós gostamos um do outro, embora ainda tenhamos uma relação

totalmente profissional. Quando penso nele, não penso "David", mas "doutor

Abramson". Nossa relação formal de médico e paciente foi mantida. Acho

perigoso para os médicos tratarem de si próprios. Diagnosticar-se a si mesmo

é como diagnosticar amigos: pode afetar o julgamento profissional.

ÉPOCA - *Seu pai e sua mãe eram médicos. Como isso influenciou sua escolha?*

*Sacks -* No começo, não queria ser médico. Gostava de química e biologia e

pensei em ser biólogo marinho. Então, decidi ser um fisiologista trabalhando

em um laboratório, não um médico com pacientes. Cheguei a pensar também em

escrever. Hoje sou médico e escritor. Falei certa vez com um gênio da

matemática que me contou sobre a filha dele, que era uma ótima matemática,

mas odiava a matéria. Pergunto-me por que isso acontece. Talvez a explicação

seja que ela vê o pai tão obcecado com matemática que quer fazer qualquer

coisa menos isso, mesmo que tenha uma mente matemática. Uma parte da pessoa

segue os pais enquanto outra parte foge.

ÉPOCA - *Numa entrevista recente, o senhor contou que a sua mãe lhe deu um

feto para dissecar ainda criança e convidou-o para a autópsia de um garoto

de 14 anos quando o senhor tinha 14 anos. Isso alterou a sua maneira de ver

a medicina?*

*Sacks -* Menciono esses episódios no livro *Tio Tungstênio*. Fiquei com

medo, mas minha mãe não fez isso para aterrorizar. Ela amava o trabalho

dela, amava anatomia, queria que eu gostasse também, e não ocorreu a ela que

eu era jovem demais. Talvez tenha a ver também com o fato de minha família

ter muitos médicos e estarmos nos anos 1940. Fato é que não sou muito bom de

anatomia. Meus "olhos da mente" não são muito bons e não consigo imaginar

como as coisas são.

ÉPOCA - *O senhor recentemente disse que envelhecer é uma espécie de doença.

Por quê?*

*Sacks -* Embora o envelhecimento traga experiências mais profundas e

conhecimento - como espero tenha trazido para mim e outras pessoas que

envelheceram -, não há dúvida de que a saúde não é mais a mesma. Quando fico

doente, não saro tão rápido. Não tenho interesse pela imortalidade, mas pela

qualidade de vida. Talvez envelhecer seja uma doença. Não uma que possa ser

curada, mas com a qual podemos conviver. Mas, tendo dito isso, quero dizer

que tenho muitos amigos felizes e criativos vinte anos mais velhos do que

eu. Meu pai viveu até os 95 e era bastante ativo, via pacientes e nadava

todos os dias até a sua morte. Se conseguir fazer o mesmo, terei tido muita

sorte.

http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI189034-15220,00-OLIVER+SACKS+AO+CANCER+LEVE+MEU+OLHO+MAS+ME+DEIXE.html