segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A queda para o alto

Domingo, Outubro 31, 2010

A queda para o alto

O empresário Thomaz Magalhães tinha tudo o que um homem pode querer - uma bela família, sucesso profissional e muita saúde -, só que um tombo do cavalo o deixou paraplégico e ele precisou se reerguer e mudar de vida. Hoje, pratica esqui aquático
Por Clarice Muniz e Danilo Angrimani
Domingo ensolarado, 25 de agosto de 1991. Dia gostoso, quente, em pleno inverno do Rio de Janeiro. O cenário é paradisíaco: aos pés do Cristo Redentor, nas vizinhanças da Lagoa Rodrigo de Freitas, cavaleiros treinam suas montarias no prado da hípica. No local destinado ao público, mulheres perfumadas, com roupas elegantes, batem papo e relaxam, aproveitando aquela bela manhã. Ali perto crianças brincam. É um dia gostoso, tranquilo. Nada de ruim deveria acontecer em um domingo assim. 
O hipismo é um esporte tradicional. Teve origem em práticas de guerra. Na Inglaterra, caiu nas graças da nobreza, que usava seus cavalos para a caça à raposa. Para desviar de troncos, galhos, saltar pedras e riachos, os nobres sabiam que era preciso haver uma perfeita sincronia entre o cavaleiro e seu cavalo. Até alcançar essa quase perfeição, o adestramento leva muito tempo e exige muitas horas de saltos e corridas. 
Na hípica, naquela manhã de agosto, o empresário e esportista carioca Thomaz Magalhães, 37 anos, conduz seu cavalo Lorenzo, um tordilho da raça alemã holsteiner, em direção a um obstáculo. São 11h. O sol agora está bem forte e o calor chega a incomodar. Thomaz é um homem bem-sucedido, vice-presidente do Grupo Montreal. Casado com Clara Magalhães, tem dois filhos, Thomaz Neto e Chiara, com 11 e 9 anos.
Naquele longínquo agosto de 1991, Thomaz prepara-se para o Grande Prêmio de Teresópolis, marcado para o fim de semana seguinte. É um dos mais importantes concursos de saltos do país. O cavaleiro está preocupado porque seu cavalo tem rendimento baixo no calor do Rio de Janeiro. 
''Vamos para casa. Não seja tão exigente com você'' 
Alto, forte, musculoso, confiante, Thomaz Magalhães parece galã de telenovela. Tem o queixo em formato quadrado. Articulado, bem vestido, é um homem bonito, que, quando solteiro, arrancava suspiros das garotas. Poucos momentos antes do salto, ele havia conversado com sua mulher. Clara tinha pedido para ele parar: ''Vamos para casa. Não seja tão exigente com você'', sugeriu. Thomaz decidiu continuar o treino. Em frente à sede social da hípica, tinha sido armada uma barragem com obstáculos. O cavaleiro avança com seu cavalo. Imprime velocidade. O obstáculo começa a crescer diante dele. Chega o momento do salto. Lorenzo pula, mas o cavaleiro se desequilibra e cai da montaria. 
Caído na areia fina e quente da hípica, coberto de pó, Thomaz mexe apenas os braços e a cabeça. Fica no chão, enquanto as pessoas correm para socorrê-lo. Ele pressente que aconteceu uma desgraça. Quando Clara se aproxima, diz baixinho ao ouvido da mulher: ''Fiquei paralítico''. 
Os momentos seguintes formam um festival de desacertos. A hípica está sem ambulância. O veículo quebrou. Não há maca. O médico particular de Thomaz está viajando. Não pode atendê-lo. Desesperada, a família liga para o ortopedista Sérgio Rudge. O médico entende a gravidade da situação e pede que Thomaz seja transportado, com urgência, para sua clínica no Rio Comprido. 
Sem movimentos abaixo da linha dos braços, Thomaz sugere ao pessoal que aproveite as traves usadas como obstáculos como uma maca improvisada. Dá certo. Na falta da ambulância, ele é colocado em uma Caravan de um associado da hípica. O veículo é amplo o suficiente para o transporte. 
Clara está no banco da frente. Ela olha para o marido, preocupada, ansiosa, prevendo que suas vidas nunca mais voltariam a ser o que eram. É quase meio-dia. O calor é muito forte dentro da Caravan. As crianças estão muito assustadas. Foram levadas para a casa de um amigo, que estava na hípica. 
Na clínica Rudge, um raio X constata o que Thomaz já suspeitava: fraturas nas vértebras T3 e T4. Ele é levado para o Hospital Samaritano, no bairro de Botafogo. A operação demora dez horas. Os médicos não conseguem reverter a situação, e o acidente na hípica deixa sequelas: o cavaleiro havia perdido o movimento das pernas. 
Durante o pós-operatório, decidiu que não queria continuar vivendo 
Em sua casa, em uma ampla e confortável cobertura no Jardim Botânico, na zona sul do Rio de Janeiro, o empresário e esportista Thomaz Magalhães, hoje com 55 anos, lembra que, durante o pós-operatório, decidiu que não queria continuar vivendo. ''Todo dia que eu via a Clara no meu quarto com meus dois filhos, eles começavam a chorar e saíam para tentar esconder que estavam sofrendo por minha causa. Aquilo me arrebentava por dentro.'' 
Thomaz chamou sua mulher para uma conversa, decidido a se separar: ''Expliquei que minha vida tinha acabado e que ela era uma mulher maravilhosa. Iria encontrar outra pessoa. Não iria ficar sozinha. Nossos filhos precisavam de um pai. E eu jamais seria um bom pai para eles'', lembra ele. ''Eu só não disse que tinha decidido me matar.'' 
Um quadro do pintor Rubens mostra Ícaro, personagem da mitologia grega, cair depois que suas asas se desfazem em contato com o calor do sol. Para quem está diante da obra, a tela causa uma sensação de vertigem, de mergulho no vazio. Thomaz caía. Ia em direção ao fundo do poço, em alta velocidade. Deprimido, lembrava-se de tragédias familiares que haviam enlutado sua família. O suicídio parecia a única saída, um destino macabro: ''Minha irmã (Maria do Carmo) se suicidou na minha frente. Ela se atirou da janela do 8o andar do prédio dela, em São Paulo, em dezembro de 1981. Dois anos depois, meu tio Elyeser se matou com veneno de rato. E meu pai se matou com um tiro no peito. Depois de tantas tragédias na família, eu tinha ficado paralítico''. 
Thomaz chegou a questionar se Deus existia: ''Quando minha irmã, meu pai e meu tio se mataram, comecei a pensar: 'Que Deus é esse?' Quando fiquei paralítico, pensei neles e queria entender que pecado eu tinha cometido para ficar paralítico. Fui para o fundo do poço, para mim tinha acabado tudo ali''. 
''Se eu me matasse, estaria ignorando o sentimento deles'' 
A ideia do suicídio foi deixada para trás quando Thomaz percebeu o quanto a mulher e os filhos sofriam ao vê-lo naquele estado. Ele repensou a questão e chamou Clara para mais uma conversa. Dessa vez, com os dois filhos presentes no quarto do hospital. ''Se eu me matasse, estaria ignorando o sentimento deles, pois sofreriam mais ainda por eu ser um suicida. Não podia fazer isso'', relembra. ''Então, conversei com eles e expliquei que estava com uma doença muito séria, que não sabia como ia ficar. Pedi para que, toda vez que eles quisessem chorar, que viessem para perto de mim. Mas prometi que um dia seríamos felizes. Seria no sofrimento deles que eu buscaria forças para superar o meu sofrimento.'' 
O apoio da mulher, com quem está casado há 30 anos, foi fundamental. ''Quando conheci Clara, a minha religiosidade era zero. Acreditava em Deus, fui batizado, mas aqui embaixo quem tomava conta era eu'', explica. Durante a convalescença, a sogra do empresário, Maricy Trussardi, católica fervorosa e influente na alta sociedade paulistana, sugeriu que ele abrisse a Bíblia e lesse um trecho para ela. ''Caiu em uma página que falava sobre paciência. Durante a leitura, senti algo que nunca havia sentido na vida.'' Nesse momento, aconteceu uma revelação. Foi um marco que ele chama de ''quebra de script''. ''Saltei do trampolim e fui lá para cima.'' 
Thomaz não se matou. Continuou casado com Clara e transformou sua queda em um movimento de assunção. Virou o jogo. Desligou-se do Grupo Montreal. E passou a repensar sua vida. ''Comecei a avaliar o que de bom eu poderia tirar com o que havia acontecido comigo. Eu brinco com meus amigos dizendo que não sei como eles me aturavam antes da queda. Eu devia ser uma pessoa muito chata. Era arrogante, materialista, prepotente. Queria cada vez mais. Eu tinha de ser o centro de tudo e as coisas tinham de ser da forma como eu queria. A vida não é assim.'' 
Nessa nova vida, Thomaz precisou superar inúmeras dificuldades. A principal delas foi vestir-se sozinho. ''No dia que consegui calçar uma meia foi uma glória. Depois, eu saía de cima da cadeira. Ia do sofá para a cadeira e da cadeira para o carro. Entrava e saía da banheira.'' Eram pequenas conquistas que culminaram com a compra de um carro novo. ''Por último, voltei a guiar, um Audi A4 de oito cilindros adaptado para deficientes físicos. Saí dirigindo. A minha cabeça já estava transformada.'' 
''Somos capazes de nos adaptar a situações inimagináveis'' 
Em sua nova existência, Thomaz tornou-se conferencista. Em suas palestras, fala sobre os tombos que a vida dá na gente, mas sem fazer disso um dramalhão. Ele ensina a encarar as tragédias de frente, enfrentá-las com coragem e superá-las. Explica: ''Somos capazes de nos adaptar a situações inimagináveis. Não digo que os meus problemas são menores ou maiores que os dos outros; o meu problema é o mais sério para mim. A forma como vou enfrentá-lo é que vai me fazer sair dele''. 
O modo de encarar a vida com otimismo levou a equipe de pesquisa de Manoel Carlos, autor de Viver a Vida, a convidá-lo a dar um depoimento no fim da novela. Sua história tornou-se conhecida em todo o país. Ele diz: ''Existem fatos dos quais a gente não tem como escapar. A morte é um deles. Outros são problemas que teremos até o fim da vida. Apesar de tudo, o ser humano não pode deixar de ter esperança. Muitas coisas vão acontecer e fugir do nosso controle. Nessa hora, é preciso enfrentar o sofrimento com dignidade, paciência, determinação e esperança''
Fonte: Contigo

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