quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Acesso à Justiça para pessoas com deficiência



Posted: 12 Dec 2012 05:33 AM PST
Por Roberto Wanderley Nogueira
Dentre as inúmeras abordagens sobre acessibilidade consolidadas pelo caráter analítico-exploratório do Artigo 9, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, perpassa a ideia fundamental do Acesso à Justiça sem o que as demais variáveis da acessibilidade podem sofrer comprometimento, depreciação ou simples descaso preconceituoso que suscita as diversas formas de discriminação que a Norma Convencional intenta combater e erradicar.[2]
Aliás, o preconceito — uma forma de barreira atitudinal — é talvez a mais persistente hipótese de agravo aos direitos “da maior minoria do Planeta”, conforme uma locução genial do Dr. Javier, ao início deste Evento. O preconceito, por isso mesmo, também se insinua sobre as estruturas e rotinas do Poder Judiciário Latino-americano. Os modelos que dispomos para fazer Justiça aos casos concretos — que vão do modelo empírico-primitivo, passando pelo modelo tecnoburocrático na direção de um modelo democrático contemporâneo[3] — sofrem os revezes do próprio Sistema Político no qual são gestados e os resultados desse cenário podem servir de base, e frequentemente servem, a construções alopoiéticas (no sentido da moderna filosofia jurídica alemã), quase sempre descoladas de sua razão de ser, ou seja: a Justiça!
Tais problemas, vistos aqui em gênero, se afirmam e evoluem solenemente em face de sociedades ainda incipientes, cujos contingentes humanos são desprovidos da plena cidadania e as pessoas se flagram numa insuperável incapacidade de avançar no processo de reivindicação social, um paradigma da contemporaneidade.
A RIADIS, em sua notável perspectiva funcional, vem ao encontro desses objetivos emancipatórios, sobretudo porque, em síntese, atua para fortalecer a participação das PcD nas diversas organizações da sociedade que lidam com Direitos Humanos e nos setores de Governo da região das Américas.
Esforcemo-nos todos por reconhecer o preconceito como uma realidade interna e externa, qualquer que seja, provenha de onde ou de quem provier, até de nós mesmos, e às demais barreiras de atitude, para proscrevê-los de nossos cenários sociais (idem, quanto às práticas/barreiras de atitude que dele emanam). Pois, onde houver barreiras de atitude há discriminação e preconceito. E onde houver discriminação, traiçoeira da convivência social mesmo em nossos próprios territórios, há injustiça social. É muito lamentável admitir que esse sentimento ainda se encontre presente nos corações e mentes de muita gente, com ou sem deficiência, sobretudo em países de economia periférica em que há um predomínio das grandes desigualdades sociais, além de desinformação sistemática e de corrupção endêmica em maior ou menor grau de verificação e intensidade.
Desse modo, toda barreira atitudinal faz mal e acarreta dissabores os quais, mais cedo do que tarde, assim individual quanto coletivamente, acabam reverberando contra quem discrimina ou é preconceituoso, no sentido de Ortega-Y-Gasset — para quem todo egoísmo é labiríntico![4]
O Acesso à Justiça, realmente, é instrumento de garantir sua eliminação: dos preconceitos e de toda forma de embarreiramento ao livre e pleno exercício da cidadania das PcD, em particular. Por isso, perpassa o reconhecimento e a execução de todos os demais direitos relacionados.
Muitas barreiras atitudinais, uma só diretiva
Das barreiras atitudinais podem-se alinhavar muitas formas, não importa se expressas ou veladas, estas últimas conforme mais comumente acontece nas sociedades abertas. Essa evidência universal, atualmente, corrobora uma outra observação, em nosso caso participativa e também evidente, baseada no comodismo ou na intolerância, de que por interferência das diversas formas de discriminação (máxime os preconceitos) a sociedade acaba aceitando, por omissão, a exclusão das pessoas com deficiência dos benefícios dessa mesma sociedade. E abrem mão do direito de demandar, em face de barreiras burocráticas que se interpôe idiopaticamente à sua frente. Para muitos, é menos vexatório deixar de exercer os próprios direitos do que serem submetidos a mais discriminação, agora por parte do próprio Estado ou daqueles atores que mais detêm a responsabilidade de os garantir pela razão do próprio ofício. Esse quadro se verifica presente não apenas nas repartições do Poder Judiciário, mas também nos diversos setores do Poder Executivo — sobretudo onde não haja sido constituído servico próprio da área da inclusão —, na atividade policial, nos ambientes penitenciários e no servico fiscal.
Com efeito, não há equilíbrio entre os contendores, que é o suporte de validade empírica para toda litigiosidade tida como civilizada, quando uma das partes seja economicamente desassistida, ou quando as suas demandas não possam ser sustentadas mediante outras formas instrumentais constituídas pelo Estado, a exemplo de núcleos de Defensoria Pública realmente eficazes e aparelhadas, gratuidade de encargos e custos processuais e facilidades para aquisição de toda sorte de tecnologia assistiva sem a qual alguém com alguma deficiência não apresente condicôes materiais de litigar de igual para igual, e postular desse modo os seus direitos.[5]
Do ponto de vista jurídico, parece elementar que a condição pessoal de cada um não deve afetar o circuito de seus direitos subjetivos e nem mesmo restringir-lhe o acesso a eles, à sua efetividade. Assim, não basta reconhecer os direitos. É fundamental que se operem as condicôes sem as quais esses direitos não serão ordinariamente alcancados pelos seus titulares. Importante considerar que a igualdade jurídica, hoje, não importa em uma mera abstração, ou em uma simples ficção legal, mas se traduz em um exercício de comprometimento com a Justiça para todos, sob o império da Lei (“Equal Justice, under Law”). Igualdade formal sem igualdade real é, pois, desigualdade e isto já não pode ser admitido concretamente nas sociedades contempâneas, regidas pelo império constitucionalizado dos Direitos Humanos.
As grandes barreiras atitudinais
Corrupção e ignorância são, seguramente, as maiores barreiras de atitude que as pessoas com deficiência tem de enfrentar em nossa quadra, sobretudo nas sociedades de economia periférica, caso da América Latina. E é exatamente o que nós, pessoas com deficiência, vamos fazer de um modo persistente e crescente até que a ideia do “desenho universal” (Artigo 2, parte final, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência) deixe de ser uma utopia entre nós.[6]
Com efeito, “a maior arma do opressor é a mente do oprimido”, teria afirmado o revolucionário sul-africano Steve Biko, nos anos 60, ainda quando da luta contra o apartheid, afinal superado.[7]
A propósito, no Brasil vivenciamos, no passado, um abolicionismo tardio. Fomos talvez a última Nação do Planeta a abolir a escravidâo. Queremos viver, agora, um segundo abolicionismo tardio que consiste, justamente, na emancipação política, social, moral e econômica das pessoas com deficiência. Isto representa igualdade para todos, conforme o modelo do “desenho universal” e o conceito contemporâneo de “maior parte” política que não exclui ninguém e, portanto, abandona de certo modo a retrógrada percepção liberal de que a maioria é a “metade mais um” e não o todo de um conjunto identificado por uma só natureza, para aceitar que essa maior parte é o todo das pessoas, todo que deve ser contemplado em todas as ações políticas e sociais, sobretudo na Administração da Justiça.
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência no Brasil
Assinada em 2006, foi internalizada no Brasil pelo Decreto-Legislativo 186/2008, na forma do artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição Federal, hipótese que a configura como norma constitucional — equivalente a uma emenda constitucional. Após sua entrada em vigor pela forma suprema antes descrita, eis que no ano seguinte, o Presidente Lula assinou o Decreto 6949/2009, promulgando-a, pelo que se estabeleceu o início de sua eficácia plena no território nacional. Tornou-se exigível tecnicamente no plano interno. Tragicamente, no entanto, o Poder Judiciário brasileiro não se aparelhou para recepcionar a supremacia da Norma Convencional em foco e os processos continuam a ser tocados como se nenhuma transformação de fundo tivesse ocorrido. Trata-se de uma situação, convenhamos, desproposital que conspira contra a própria Constituição da República.
Conforme a norma convencional suscite o início da “era dos direitos” das pessoas com deficiência em âmbito mundial, o Decreto de promulgação antes aludido traduz a “era dos direitos” das pessoas com deficiência no Brasil, que ainda está por acontecer, em face das circunstâncias antes aludidas.
Há de se reconhecer, no entanto, o caráter histórico, emancipatório e de Justiça desse empenho de Governo. Ninguém há de tirar-lhe esse mérito do qual todos aqueles que sofremos discriminação em razão de deficiência reconhecemos. Todavia, a garantia de Acesso à Justiça por parte das PcD vai muito além de um simples reconhecimento público sobre a validade jurídica de determinada disciplina legal.
Conforme acentuado, há uma distância entre o que está posto normativamente e o mundo real, o plano dos acontecimentos em que os direitos deveriam estar sendo plenamente gerenciados também positivamente.
O fato incontestável é que a norma convencional, incorporada constitucionalmente em toda sua extensão e sem ressalvas, inclusive no que se refere ao seu Protocolo Facultativo, é autoaplicável, naquilo que comportar, traduz cláusula pétrea, por se tratar de matéria que envolve a Doutrina dos Direitos Humanos e foi aprovada com quorum qualificado por ambas as Casas Legislativas — Senado Federal e Câmara dos Deputados —, e é também insuscetível de revisão constitucional (derivada). Deveria ser comumente aplicada pelos Juízes e Tribunais sem titubeios, reticências ou desconhecimentos de causa, tudo isso que revela mais discriminação, qualificada e agravada pelos seus atributos funcionais específicos.
Sobre o Protocolo Facultativo, também incorporado na Constituição Federal brasileira, entende-se que por sua subscrição o país reconhece a competência do Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência para receber e considerar comunicações submetidas por pessoas ou grupos de pessoas, ou em nome delas, sujeitos à sua jurisdição, alegando serem vítimas de violação das disposições da Convenção por um Estado-parte (Artigo 1, do Protocolo Facultativo). Isto significa, na prática, que as matérias concernentes à solução de controvérsias que versem à fiel aplicação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência podem ser discutidas ou rediscutidas para além da Ordem Jurídica interna. O Supremo Tribunal Federal, nesses casos, não detém, portanto, a última palavra.
Pela norma convencional, a alteridade passou a fundamentar mais ostensivamente as ações do poder público e também as relações do setor privado de uma sociedade aberta. Isso explica o interesse social crescente pelos negócios de Estado e pela construção social como um todo, aclara o despertar das dormitâncias da cidadania em países ainda submetidos às desigualdades sociais mais agudas e sinalizam para um futuro de mais prosperidade para todos.
Todavia, ainda estamos nos construindo a partir das bases. Tudo ainda parece muito incipiente, distante de concretização sistemática. Os casos isolados bem sucedidos acabam sendo tomados como excepcionalidades, frequentemente exitosos em face da sensibilidade pessoal de alguns ou da pressão social e servem, por isso mesmo, como confirmação da regra geral omissiva da qual se reporta neste texto.[8]
A distância entre a forma e a concretude
Temos lei, certamente, mas no Brasil ainda se vive como se a lei não existisse, ou como se ela apenas funcionasse para poucos. O Estado, por meio do Poder Executivo, não parece suficientemente aparelhado para garantir a todos o recurso ao pleno exercício de seus direitos (Acesso à Justiça).
Enquanto isso, o Poder Judiciário brasileiro, engalfinhado em questões prosaicas e corporativistas, frequentemente vaidosas, não raro vencimentais, acaba perdendo a chance de realmente distribuir Justiça aos brasileiros em qualidade e quantidade que a justifiquem politicamente. E não há democracia efetiva — que mede com participação — sem que se compreenda a existência de um Poder Judiciário que realmente funcione e que sobrepaire acima de todas as críticas sociais e desconfianças públicas. Nada obstante, o que vemos é que os Tribunais brasileiros acabam sendo, ainda, estruturas como que feudais, pesadas, burocratizantes, territórios de um passado que somente nos deixará quando forem reoxigenadas as suas composições sob o crivo da meritocracia real e da participação popular. Ajudará muitíssimo se as populações vierem a compreender a necessidade de transformação institucional para os cenários judiciais em nossa Pátria, a começar pela reciclagem pedagógica de seus quadros. A propósito, poucos são os Juízes que já ouviram falar na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e, quando isso acontece, mediante uma tomada de consciência mais ou menos relevante e séria, se não se envergonham do quanto desconheciam em detrimento dos destinatários da Ordem Jurídica, a quem devem servir, e do feixe de suas próprias responsabilidades constitucionais, às quais estão submetidos funcionalmente, insistem em fazer de contas que essa disciplina simplesmente não existe, ou não se lhes parece tão relevante em face do círculo de giz em que se encontram represados, escravizados pelo próprio Poder que representam. Nesse contexto, as carreiras judiciais encontram terreno fértil às defeções de toda ordem, porque fica estabelecido um dilema funcional crudelíssimo e também antissocial: manter a independência funcional e abrir mão da possibilidade de ascender nas carreiras, ou tornar-se moralmente laxista para aspirar às suas promoções.
Com efeito, nomenclaturas, institutos, conceitos diversos estão seguramente abrogados pela norma convencional, após sua internalização com status constitucional no país. Mas, para que a tanto se reconheça é necessário um esforço hermenêutico de atualização sistemática que tem a ver com o modo de como se haverá de ler o conjunto ressaltado das disposições legais preexistentes, inclusive aquelas constantes do corpo da própria Constituição Federal, ainda não revisada para isso, e o que está regulado hodiernamente, mas que poucos dominam, é lamentável. Essa atitude vale também para boa medida dos quadros do Ministério Público, inclusive aqueles que cuidam dos interesses coletivos ou difusos, cuja atuação, em tese, resulta em maior volume de atenção e cuidado para as questões de fundamento constitucional. Chega-se ao ponto de passar ao desaviso uma regra processual de proteção da cidadania, inscrita no Artigo 5º, da Lei 7853/1989, que exige a participação efetiva do Ministério Público, enquanto fiscal da lei (custos legis), em todas as ações relativas à questão dos direitos das pessoas com deficiência, qualquer que seja esse direito, qualquer que seja a pessoa, desde que relacionados, um e outra, com a deficiência.[9]
Também o Acesso à Justiça está, de um modo especial, tratado na Convenção de Nova Iorque, mas se contemplamos as reais possibilidades desse enfrentamento, nos damos conta que há um gap tremendo entre o que está positivado e o que de fato acontece em termos de possibilidades concretas de execução dos postulados da Ordem Jurídica estabelecida.
É desse modo que a igualdade de condições preconizada pela Convenção, além da capacitação de Juízes e servidores, nos termos do Artigo 13, ítens 1 e 2, da norma convencional, tem sido solenemente negligenciada pelas repartições de Justiça no Brasil, inclusive no que se refere à linguagem empregada em seus sistemas.[10]
Sobre isso, o processo judicial eletrônico, por exemplo, que exige interoperabilidade comunicacional, mesmo em razão de disposições processuais aplicáveis, simplesmente não pode ser lido pelas pessoas cegas, dado que esse processo se materializa por meio de dados imagéticos os quais, sem o auxílio da ferramenta da audiodescrição ou da ledoria (Mesas de Atermação e consulta) sem custo adicional para a parte, simplesmente não consegue conhecer e avaliar.
Essa característica estranha do processo judicial eletrônico no Brasil — de não dispor de tecnologia assistiva satisfatória, talvez nenhuma, para garantir o acesso de todos aos seus recursos —, inaugurado às pressas sobejamente por motivações em grande parte midiáticas, importa em que uma pessoa cega possa vir a ser condenada sem saber do que se trate a imputação que lhe é feita no processo de tipo eletrônico sem acessibilidade comunicacional. E sem a mínima acessibilidade comunicacional, ademais, as pessoas surdas falantes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) sequer têm acesso, por intermédio dessa que é também uma língua oficial no país, aos principais documentos legais como a Constituição Federal e a própria Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em mídia eletrônica (DVD) que possa ser ordinariamente distribuída, país afora, juntamente com outras mídias convencionais já em uso sistemático, comercialmente ou não. O mesmo se diga quanto às pessoas surdas usuárias do vernáculo, igualmente desassistidas, em geral, quanto às soluções de acessibilidade de que precisam. A comunicação é fundamental para que o Acesso à Justiça se planifique entre as PcD de tipo sensorial.[11]
Paradoxalmente, falta-nos, ainda, uma lei que torne a tudo isso obrigatório, sob risco de penalidade severa e eficaz, e que conjuntura ou ideologia alguma de momento possa sentir-se na mais remota legitimidade para objetar tudo isso, acesso a todos ao processo e as rotinas da Justiça em seu país ou fora dele. Vale mais à Nação o direito natural de conhecer-se a si mesma e propiciar a comunicação efetiva entre os seus filhos. Vale mais a humanidade realizar-se enquanto tal.
Por outro lado, para a imensa maioria dos Juízes e dos servidores de Justiça no Brasil — digo-o, sem receio, assumindo, embora, a leviandade de não dispor de uma pesquisa social aplicada quanto ao enredo —, mas com base em minhas observações participativas de trinta anos de judicatura inteiramente engajada e crítica do corporativismo do setor, acessibilidade não passa de “rota acessível”, quando muito.
Em termos gerais e mesmo que venha a ocorrer uma ou outra recomendação de gestão positiva a respeito do assunto, inclusive da parte do Conselho Nacional de Justiça, órgão que exerce o controle externo do Poder Judiciário, mas que não se ocupa das atividades de mesmo viés da Suprema Corte e de seus Ministros, não se tem noção do que acessibilidade em meio judicial quer significar em toda sua extensão!
Ora, o simples implemento da mudança dos sistemas processuais em direção a uma mídia tecnologicamente sofisticada em sociedades como as da América Latina ignora solenemente o estado de desigualdades sociais em que ainda vivemos. E agrava o estado de embarreiramento das pessoas mais economicamente desassistidas quanto ao Acesso à Justiça nessas sociedades. Trata-se de um dilema paroxístico que pede reflexão, porque, enquanto os sistemas processuais estão migrando, as pessoas menos felicitadas estão padecendo mais exclusão. As PcD são parte desse processo e formam um contingente dos mais vulneráveis.
Cheguei a fazer consulta sobre isso ao Conselho Nacional de Justiça, remetendo expediente escrito a um de seus Conselheiros, lancei reptos em Listas de Discussão de Magistrados e também nas Redes Sociais, mas obtive o silêncio como resposta. É como se o Estado brasileiro estivesse mais interessado em construir molduras, montar cenários, mas sem conteúdos realmente consistentes e, sobretudo, de acordo com a Constituição Federal que, em nosso caso, incorporou a Convenção de Nova Iorque, sem ressalvas, inclusive quanto ao seu Protocolo Facultativo.
Cumpre destacar, outrossim, que todos os Tribunais Superiores do Brasil investiram largamente para migrar do formato processual do papel (mídia tradicional) ao meio eletrônico (mídia moderna), sem cuidar da acessibilidade tão importante quanto inadiável, porque diferentemente importa em violar o direito do cidadâo, qualquer que seja ele, de se socorrer da Administração da Justiça para obter o cumprimento de seus direitos por parte de terceiros e até do próprio Estado.
Adicionalmente, os sistemas processuais eletronicamente disponibilizáveis restringem o potencial de armazenamento de dados, situação que controverte ao princípio constitucional do Acesso à Justiça para todo e qualquer cidadão. Toda limitação ao direito de produzir defesa útil aos demandantes em geral é injustificável do ponto de vista da Doutrina dos Direitos Humanos. E quanto ao exercício dos direitos das PcD, quando questionados juridicamente, eventual interpretação restritiva constitui vício epistemológico insanável, cabendo, por isso, ser aproveitados ao máximo possível até o ponto de equalização técnica, que é a igualdade real.
Tampouco o Poder Judiciário tem sido sensível à constituição de quadros funcionais compostos, em escala significativa, de PcD. Há quem ainda considere, absurdamente, que pessoas cegas, por exemplo, não podem ser Juízes. Juízes que, nada obstante, superam as barreiras de atitude que têm de enfrentar em sua vida pessoal e profissional, acabam sendo excluídos das promoções na carreira e não compartilham dos ciclos discussivos das Cortes, limitando-se a um exercício como que burocrático de suas funções. Não há espaços para a expansão de suas atividades. Um certo ostracismo cínico e cruel se estabelece e mesmo entre os mais jovens, sucede que eles já sabem dos estigmas daqueles, motivo pelo qual os evitam também.
É um cenário absurdamente kafkiano para quem, sendo PcD, tenha superado os desafios do embarreiramento atitudinal, logrado galgar posições institucionais — um cargo de Juiz, por exemplo —, sobretudo nos modelos tecnoburocráticos, cujo acesso se faz por meio de seleção pública, mas se flagram a si mesmos impotentes de evoluir por outras razões jamais confessadas, mas que se exprimem como preconceito e discriminação. O curioso é que até as normas legais e constitucionais acabam sendo subvertidas ou violadas para evitar o avanço propositivo dessas pessoas, porque: a uma, sabem o valor da própria dignidade; a duas, porque, em face desse reconhecimento, se esforcam para manter a integridade de sua independência e a qualidade das decisões que proferem em seu exercício.
Acessibilidade e empoderamento
Essa abordagem, rigorosamente convencional, pressupõe, além da igualdade, da acessibilidade e da inclusão, um outro atributo indissociável, a saber: o empoderamento!
Empoderar é garantir ao vulnerável, a plenitude de suas possibilidades humanas, mediante a disponibilização e o emprego, no caso das pessoas com deficiência, de recursos assistivos, tecnológicos ou criativamente dimensionados para as diversas espécies de limitação ou dificuldade que tenham de ser superadas, seja no trabalho, na escola, no lazer, em casa, em todo lugar e em todas as atividades nas quais se pretenda inserir, para que essa pessoa possa exercitar, já empoderada para o autogoverno, de igual para igual, os seus direitos que estão associados ao seu patrimônio jurídico e à sua dignidade, não à sua condição física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla.
As deficiências, desse modo, refletem um estágio de desenvolvimento social do meio organizado em que se vive, não um extrato de dignificação da condição humana da pessoa com deficiência, que é um axioma jurídico, um valor como que absoluto, insuscetível a relativizações especiosas ou não consubstanciais à própria deficiência, vista a partir do foco da PcD (“Nada de nós, sem nós!”).
Com efeito, a única resposta possível de ser oferecida quanto ao trato dos Direitos Humanos é que eles são inegociáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis, incondicionais e jamais excludentes. Porque todo ele resulta da insubmissão aos propósitos de manutenção de certos extratos de exclusão ativados por séculos a fio, durante os quais muitos foram privados de seus direitos, do acesso à riqueza e ao poder que esses mesmos excluídos ajudaram a construir a toda carga e a pleno sacrifício.
Assim sendo, a interpretação que serve à ontologia dos Direitos Humanos não pode ser restritiva, mas extensiva. O Acesso à Justiça é, pois, substanciamente a efetivação dos direitos daqueles que postulam. Os direitos das pessoas com deficiência, portanto, são interpretáveis amplamente, por forma a garantir-lhes empoderamento sem o que tampouco se estabelece a “paridade de armas” indispensável ao Acesso à Justiça, como categoria fundamental tanto na Ordem Jurídica interna quanto internacional. Não por acaso, um Protocolo Facultativo foi anexado à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de modo a que esses direitos relacionados possam ser discutidos, ainda que o Estado Parte se manifeste, concretamente, como desaparelhado a fazê-lo bem.
Além disso, as condições para esse empoderamento podem ser naturais ou constituídas. Muitos superam por si mesmos as próprias dificuldades e são muito bons! Esses, porém, não tradizem referências paradigmáticas para o estabelecimento de uma política pública afirmativa da Inclusão Social, pois o que serve de substrato a uma tal regulação é o promédio da condição humana a ser protegido contra toda vulnerabilidade que as pessoas superdotadas de talento não chegaram a experimentar radicalmente, apesar de suas diferenças e do caldo de cultura que o preconceito findou por sufocá-los de algum modo. Já ouvi heresias do tipo a rechaçar a política afirmativa e compensatória de cotas, sobretudo nas Universidades, em razão da presença proativa, embora isolada, de um Ministro do Supremo Tribunal Federal, ante o fato de Sua Excelência ser uma pessoa negra. Convém destacar que no Supremo Tribunal Federal do Brasil jamais atuou um julgador com algum tipo de deficiência. Já ouvi outras tantas, tão ou mais vituperiosas como aquela de que Juízes em geral não podem ser cegos. Quanta estupidez que associa, numa química explosiva, ignorância cognitiva e prepotência situacional de dominação!
Dentre as barreiras que constantemente se nos afligem, contam-se inúmeras abominações éticas que insistem em não largar a contemporaneidade. É preciso combatê-las e, fazê-lo, é antes de tudo conquistar espaços e trabalhar pela transformação social, a partir do exemplo.
De fato, a Suprema Corte brasileira, que já superou a barreira étnica e a de gênero, pelo visto, reclama também a superação da barreira atitudinal que impediu, ao longo de sua história, de ter uma pessoa com deficiência em seus quadros para contribuir no aprimoramento da construção da jurisprudência que vai favorecer, por medida de Justiça e em razão do perfeito atendimento da Carta Política e da legislação de regência ao universo de pessoas com deficiência no Brasil, sem necessidade de que tenhamos de nos socorrer, a todo instante, do Protocolo Facultativo que nos garante o direito de demandar ao Comitê da ONU encarregado da composição desses conflitos em sede internacional. Esta possibilidade, no entanto, deveria ser melhor aparelhada pelas Entidades que congregam os propósitos de emancipação e direitos das PcD no Brasil e no mundo. O monitoramento internacional dos litígios relacionados deve ser uma prática regular na dimensão das lutas inclusivistas. A pressão que vem de fora fomenta o aprimoramento dos sistemas internos, quando um Estado é parte de um ajuste internacional, caso da Convenção de Nova Iorque e de nossos países latino-americanos.
Pode-se, pois, afirmar que o Acesso à Justiça é talvez a cláusula mais recorrente de empoderamento com que as pessoas com deficiência passam a lutar, com eficiência, pela observância fiel e exaustiva de seus direitos, a partir da construção de meios com os quais efetivamente pelejam e se autoafirmam na medida justa, ainda que o mundo não lhes proporcione as adequações razoáveis a que também tem direito fundamental. Para isso, será sempre necessário um corpo judicial qualificado tecnicamente o bastante e também preparado e sensível do ponto de vista atitudinal para garantir, por meio da aplicação sobranceira e racional do Direito, a superação das barreiras idiopaticamente montadas para impedirem o florescimento da paz, da prosperidade e da felicidade para todos.
Repete-se, ao fim, o que diz o Professor Ferdinand Cavalcante Pereira, da Universidade Federal do Piauí, Brasil:
O empoderamento devolve poder e dignidade a quem desejar o estatuto de cidadania, e principalmente a liberdade de decidir e controlar seu próprio destino com responsabilidade e respeito ao outro. O débito social das instituições políticas e estatais diminui à medida que seus agentes desenvolvam ações e condutas de efetiva participação e mudança sociais.[12]
Acessibilidade geral prevista na Convenção
O conceito jurídico de acessibilidade, além do mais, está analíticamente estabelecido na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de acordo com o seu Artigo 9, o qual dispõe de dois ítens com diversas alíneas.
A norma convencional estabelece que, para o fim de possibilitar às pessoas com deficiência viver de forma independente e participar plenamente de todos os aspectos da vida — todos, sem exceção! —, deverão ser adotadas medidas ajustadas ao asseguramento do acesso dessas pessoas, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, ao meio físico, ao transporte, à informação e instalações abertas ao público ou de uso público, tanto na zona urbana como na rural. Pressupondo a identificação de barreiras e obstáculos à acessibilidade, também e principalmente as de atitude que derivam comumente de preconceitos arraigados no socius, não raramente reveladores de viés autoritário e colonizante, tais medidas se devem prestar ao redimensionamento funcional de prédios, estradas, meios de transporte e demais instalações internas e externas em geral com vistas ao seu uso conforme o parâmetro do desenho universal. Do mesmo modo, as informações, as comunicações e outros serviços, inclusive os veiculados por meio eletrônico, além dos emergenciais, precisam guardar o desenho universal, que confere acesso a todos, não somente a uma suposta maioria.
Além disso, os Estados Partes estão obrigados a estabelecer padrões mínimos de normatização técnica para a garantia da acessibilidade, segundo o padrão do desenho universal, proporcionar formação e capacitação aos atores envolvidos, dotar os espaços públicos ou de uso público de plena sinalização em formatos de fácil assimilação e leitura, mediação, guias, ledores, intérpretes de língua de sinais, promover outras formas de assistência e apoio a pessoas com deficiência tendo em vista as informações de que necessitem, promover o acesso dessas pessoas a novas tecnologias da informação e comunicação, inclusive à Internet, conceber, desenvolver e disseminar a produção de novos sistemas e tecnologias de informação e comunicação, objetivando acessibilidade com custo mínimo.
Tudo isso revela alteridade, palavra que concentra uma síntese muitíssimo apertada, embora inteiramente substanciosa quanto às necessidades de descrição do objeto aqui comentado. Mas, afinal, o que pode ser definido como alteridade que serve a esse propósito sintetizador? É ser capaz de apreender o outro na plenitude de sua própria dignidade, e não na conformidade de nossa própria ética ou na supremacia dos próprios interesses. Olhar para o outro, conforme a sua perspectiva para, sem abandonar a própria identidade, procurar compreender com mais profundidade e menos superficialidade os objetos que se encontram à nossa volta, sobretudo aqueles que se relacionam com os direitos alheios. É respeitar as diferenças e reconhecer, sobranceiro, que a diversidade é o que há de mais convergente na existência humana, pois a dignidade da pessoa notabiliza a todos e não somente a alguns. O sentimento de alteridade exclui a possibilidade de um substituir-se a outro. E quanto menos alteridade existir no contexto das relações intersubjetivas e sociais, mais conflitos acontecem. Se a falta de alteridade acontece no âmbito interno aos umbrais da Justiça, fica descortinado o palco para grandes sofrimentos e atavismo social. Consolida-se, pois, institucionalmente, a desigualdade e se transforma em letra morta tudo o quanto se construiu até agora em termos de plataforma normativa de referenciação universal para as relações sociais no trato dessa questão fundamental da luta pelos direitos das PcD.
Se mais fosse possível referir ao instituto da acessibilidade das pessoas com deficiência junto aos setores públicos ou aos ambientes e serviços de uso público, muito não se poderia acrescentar, salvo pelo registro de que, muito embora não se trate de um termo equívoco ou indeterminado, presta-se, por outro lado, a robustecer a ideia de expansão lógica de seu conteúdo e de suas possibilidades.
E é exatamente o caráter construtivista que melhor afirma, de modo progressivo e potencial, a sua natureza. Pois, afinal, também “o homem é um ser inacabado”, conforme genial intuição de Cabral de Moncada, filósofo português.[13]
Acesso à Justiça como problema e a Inclusão Social
Conforme restou implícito linhas atrás, no campo da Inclusão Social ainda prevalece a ignorância e a falta de alteridade, mesmo da parte de atores oficiais que deveriam, outrossim, sofrer algum tipo de atualização modernizadora no que respeita aos fundamentos de sua própria funcionalidade. Juízes, Representantes do Ministério Público, Advogados, Serventuários de Justiça, Autoridades Policiais, Fiscais e Penitenciárias, Funcionários Executivos e até Professores de Direito integram essa pletora de qualificados “analfabetos funcionais”. Entre eles, ressalvando-se as honrosas exceções, predomina a insensibilidade, o descuidado e a prepotência socavada e sibilina que prevalece à toda razoabilidade. O despreparo é gritante e o fomento ao ensino inclusivo e à interdisciplinaridade, além de raro, desencorajado.
Esses elementos, na verdade, são os fantasmas mais recorrentes e explícitos com que ainda temos de lidar incessantemente. Enfrentá-los a todo instante na tarefa de eliminação das barreiras que temos de superar o tempo inteiro também no âmbito da atividade jurisdicional do Estado é o que nos cabe para a construção efetiva e permanente de uma sociedade realmente justa e igualitária, por isso mesmo inclusiva, de bem-estar social a todos os cidadãos.
Sobre isto, muitos ainda imaginam que incluir é simplesmente integrar, mantidas as bases sociais e antropológicas da exclusão vigente no passado de degredo e sofrimento, de “apartheid”. Sobre isto, veja-se o gráfico a seguir sobre o quê parece a Inclusão Social:
Conforme o que ressaltei em Palestra que tive a oportunidade de proferir no último mês de setembro, em Brasília, em matéria de inclusão a ordem é descolonizar. Para tanto e a fim de que se garanta o Acesso à Justiça das PcD, em particular, não se divisa uma forma mais eficaz de descolonização, senão ocupando espaços, assim horizontal quanto verticalmente, nas esferas do Poder Judiciário, sobretudo, por efeitos de exemplaridade e multiplicação de condutas.
Para se promover o “desenho universal” idealizado pela causa inclusiva, parece indispensável eliminar os “senões”, as questiúnculas de somenos importância, os receios de avançar decididamente, mediante uma experimentação crescente e afirmativa de possibilidades reais que realmente preencham o que se considera uma agenda positiva, em face de uma estrutura como que esvaziada de partícipes positivamente comprometidos com os fundamentos da própria Ordem Constituída.
Insiste-se: por que, afinal, o Brasil jamais conheceu um Ministro (Juiz) PcD na sua Suprema Corte? Por acaso, um país continental como o nosso não dispõe de quadros ajustados a esse exercício honorabilíssimo? Somos, enfim, uma espécie de categoria social inferior? Evidente que não, mas isso tudo parece servir, à saciedade, para esclarecer o estado em que nos encontramos na atualidade de desenvolvimento social e político. De um lado, são cerimonialmente reconhecidos direitos às PcD; de outro, desgraçadamente, transparece histórico que essas pessoas vem sendo ignoradas.
É preciso superar a fase diagnóstica acerca dos problemas da exclusão. É preciso fundamentalmente oferecer a resposta que os Direitos Humanos são, de fato e de Direito, inegociáveis, nem restringíveis e muito menos eufemizáveis, no sentido de sua relativização.
A questão do Acesso à Justiça integra esse fenômeno histórico e é imprescindível que esse quadro se desconstrua o quanto antes, no Brasil e em toda parte em que essas restrições idiopáticas estejam acontecendo em detrimento dos direitos das PcD, bem assim como de todos os cidadãos em geral. A propósito, o sofrimento de um só cidadão repercute de um modo deletério e alargado nos quadros sociais que refletem instabilidade. A sociedade é uma estrutura de vasos comunicantes e a violação que se perpetra aqui, degenera acolá ainda mais e, assim, sucessivamente. A metáfora cabível é que o preconceito é um câncer metastásico!
Agora, com apoio em registros históricos clássicos pode-se afirmar que desde quando a força cedeu lugar à razão para que por meio de normas as relações humanas pudessem ser reguladas efetivamente, e a partir de quando, outrossim, o Estado também chamou a si o monopólio da Jurisdição, o Acesso à Justiça tornou-se uma variável altamente problemática, além de contraditória. A eliminação dessas barreiras tampouco se presta a soluções pontuais, isoladas, haja vista que os problemas decorrentes muitas vezes são interrelacionados socialmente.[15]
Mudanças podem suscitar questões periféricas de tipo corporativo ou extratificado e é preciso, antes de tudo, ultrapassar paradigmas nem sempre fincados em diretivas justificáveis do ponto de vista dos Direitos Humanos e da comunhão universal, da intergrupalidade; porque, do contrário, poderemos regressar aos conceitos pré-inclusivistas, os quais, embora representando um avanço histórico em relação à exclusão clássica, desservem, no entanto, à causa da Inclusão Social, a exemplo do esforço de enquadrar, também preconceituosamente, as deficiências em um plano puramente clínico ou definir a inclusão como sinônimo de mera integração social.
Bem por isso, mais se justifica que a visão dos vulneráveis possa compor as formulações dos veredictos e, antes, das políticas públicas associadas ao fundamento substancial do Acesso à Justiça, entendido como o direito de demandar e de obter efetivos resultados concretizadores dos direitos em geral. Importa em exercício pleno da cidadania. No mesmo sentido, afirmam Cappelletti e Garth:
O “acesso” não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica.[16]
É a partir desse ponto lógico que não se desconhece mais a importância dos saberes interdisciplinares e participativos na compreensão e na composição dos direitos das PcD, à luz do que se erigiu em termos normativos universais com o advento da Convenção de Nova Iorque. Pode-se chamar a isso, com um mínimo de esforço, de “aliança pró-inclusão”, conforme o superior pensamento de Romeu Sassaki, a quem costumo denominar, pelo conjunto de sua obra invulgar e também pela sua humanidade explícita e luminosa, de “Príncipe da Alteridade brasileira”.[17]
De fato, garantir direitos a quem jamais os obteve não é tarefa fácil de executar na medida em que, antes de mais nada, os preconceitos, ante a sua raiz cultural, não se eliminam por decreto, embora seja de todo importante que penalidades significativas venham a ser exemplarmente estabelecidas e impostas por forca de leis que vinguem realmente. Integrar as PcD aos processos de construção da Justiça, novamente, parece fundamental.
No propósito da matéria inclusiva, não há lugar para ideologismos de ocasião. A causa inclusiva é, sobretudo, um caminho sem volta, uma via de mão única, historicamente pavimentado, passo-a-passo, crescentemente, pois aponta para os fundamentos mais elementares da convivência humana, para os pilares da própria humanidade, afinal revelados e reconstruídos, marcadamente a partir do pós-guerra. Nada obstante, esse fato histórico não esconde as contradições de toda ordem em matéria de Direitos Humanos. A luta entre o bem e o mal persistirá durante o hiato de existência da humanidade sobre a face da Terra, bem o sabemos. Mas, é nessa luta em que podemos encontrar o sentido mais adequado da perfeição humana. Valemos pelos nossos ideais, não exatamente pela nossa corporeidade, tão bela quanto efêmera. Cumpre-nos o dever de pelejar por um mundo mais justo para as atuais e para as futuras gerações. É a transcendência que nos afirma como agentes de transformação social, agora e enquanto vida nos restar para ser vivida. Porque mais definitivo que a morte física é a letargia de uma vida sem sabor, sem inspiração, sem propósitos nobilitantes que haverão de marcar a nossa posteridade e o respeito das futuras gerações.
O que se divisa e objetiva no contexto histórico atual é a presença cardinalíssima do homem diante de si mesmo e do seu semelhante. Sem discussão possível que induza algum contraponto razoável a este passo da história da civilização.
Considerações finais
Sucede que, diante do que foi exposto, não há outro registro mais significativo a proceder do que situar os conceitos de acessibilidade, empoderamento e cidadania, a cujo serviço se posta a Administração da Justiça nas sociedades democráticas e sociais de Direito, como que sinonímicos, restando semanticamente pleonástica a associação dessas palavras numa só oração, quando se tratem de direitos das PcD, à luz da Convenção de Nova Iorque, diploma legal que marca a “era dos direitos” para esse contingente bastante significativo da humanidade.
De tal modo que acessibilidade sem cidadania (que envolve quebra de empoderamento) é construção inútil. Cidadania sem acessibilidade e empoderamento, disfuncional.
Assim, nos sistemas judiciários dos tipos empírico-primitivos e tecnoburocráticos que predominam na América Latina, as Supremas Cortes exercem papeis formidáveis na construção, fomento e eventual controle das políticas públicas, dos direitos individuais e coletivos e da cidadania.
Cumpre destacar, sobre isto, que no caso brasileiro a Constituição Federal tem densificado a Jurisdição do STF, mediante o estabelecimento de mecanismos jurídicos que acentuam suas competências e agregam outras tantas — Ações Diretas de Inconstitucionalidade, Repercussão Geral, Recursos Repetitivos, Súmulas Vinculantes, entre outras — concentrando-as de tal modo que o exercício difuso da própria Jurisdição pelos demais Juízes e Tribunais acaba se transformando em um mero exercício de chancela, em simples ritos de passagem, inteiramente burocráticos.
Nesses casos, os Juízes sequer se ocupam de produzir as próprias decisões, substituídas por colagens. Os assessores o fazem e lhes resta a atividade de subscrever os documentos respectivos. A lógica do devido processo legal, também uma categoria fundamental de Direito, nessas condições, perde consistência epistemológica e também normativa. O Poder Judiciário, enquanto estrutura de verticalidades, como que se desconstrói nesses casos e as expectativas jurídicas da população, sob a justificativa de um suposto “neoconstitucionalismo”, quanto aos fundamentos nem sempre sistemáticos das decisões-vetor, espécie agravada dos precedentes dos sistemas do Common Law, de tradição saxônica, sofrem radical restrição e o espectro de previsibilidades do sistema judicial regional, de tradição romano-germânica, igualmente.
Pode-se imaginar o cenário de instabilidades em que as pessoas em geral acabam sendo projetadas dentro em um ambiente “primitivo”, conforme locução do exponencial Jurista argentino Eugênio Raúl Zafarani (nota de rodapé 3). Um tal “primitivismo” se intensifica em relação às políticas de constituição das composições das Cortes Supremas dessas sociedades, quando recaiam sobre atores enlaçados pelo sistema político e não por exigências sociais clássicas de legitimidade e representação. De fato, as composições do Supremo Tribunal Federal do Brasil são constitucional e livremente enredadas pelo Chefe(a) do Poder Executivo, mediante singular sabatina do Senado Federal (atividade que se tem revelado pró-forma), entre brasileiros natos com idade que medeia os 35 e 65 anos, além de dispor de notável capacitação jurídica e reputação ilibada. É o que basta a um brasileiro se tornar Ministro do STF, a Corte Suprema do seu país.
Ora, é histórico que dificilmente o STF controverta aos interesses do Poder Executivo naquilo que mais se lhe afeta a ideologia de sustentação política. O instituto da reeleição para a Presidência da República agravou esse quadro no caso brasileiro, porque composições quase que inteiras podem ser constituídas por uma só autoridade presidencial. Por melhor que seja a autoridade, isso não parece republicano. É um fenômeno, no entanto, que não se declara, por revestir-se de perturbadora insubmissão às propriedades institucionais da Suprema Corte de um Estado soberano e à interdependência funcional dos Poderes Políticos da República.
Torna-se claro, desse modo, que uma avaliação positiva acerca da presença de uma ou mais de uma PcD, devidamente comprometida(s) com a Inclusão Social, nos quadros das Supremas Cortes dos Estados latino-americanos é de todo pertinente e de certo modo fundamental aos propósitos de efetivação de seus direitos, em particular, mas não apenas os deles, senão também e principalmente o de todos, indistintamente.
Ao passo da sugestão de edição de uma espécie de Moção de Apoio a essa causa, a ser dirigida a quem de Direito, também parece fundamental, conforme já ressaltado anteriormente, fomentar e preparar, no âmbito do terceiro setor das sociedades latino-americanas do qual a RIADIS é pioneira, o “monitoramento internacional” das questões pertinentes à defesa dos direitos e à emancipação política, econômica e social das PcD, sobretudo em face do Protocolo Facultativo à Convenção de Nova Iorque, plataforma normativa de referência, regulação e fomento das atividades que nos congregam na causa comum e universal de incluir a todos nos bens da vida e na construção de um tempo de mais felicidade e menos sofrimento para todos. Enfim, pelo bem da humanidade e do desenvolvimento integral de nossas sociedades.
Em matéria de Inclusão Social, pois, a ordem é descolonizar e de vez instalar a cidadania para todos!
Referências bibliográficas
[1] Palestra apresentada por Roberto Wanderley Nogueira (http://lattes.cnpq.br/0179326544123326) à V Conferência RIADIS no Seminário Internacional ¨LatinoAmérica Acessibible y sin Barreiras”, sobre o tema: “Acesso à Justiça à Luz da Convenção de Nova Iorque”. Quito, Equador, 10 de novembro de 2012.
[2] Um movimento progressivo em escala planetária vem sendo desenvolvido há mais de duas décadas, a partir de uma ação mundial sob a firme orientação da ONU e das entidades que congregam as pessoas com deficiência em torno do ideal de inclusão social em igualdade de condições. Esses esforços resultaram, a duras penas, no que podemos convencionar como a “era dos direitos” dessas mesmas pessoas, as quais, estando em toda parte e que pela razão de alguma limitação física, intelectual, psicossocial, sensorial ou múltipla, acabavam acreditando, ingenuamente, que eram mesmo, em muitos casos, “incapazes” (com aspas), mas não eram. E realmente não são! A pessoa é um todo muitíssimo complexo e, ao lado das próprias limitações, coexistem outras tantas habilidades e competências que não devem ser diminuídas ou desprezadas, pois tudo isso é útil à cidadania, ao país e à sociedade. É fundamental à afirmação da cidadania de cada qual. A propósito, esse registro vale a todos.
[3] Zaffaroni, Eugenio Raúl (1995): Poder Judiciário – Crise, Acertos e Desacertos. São Paulo: Revista dos Tribunais, passim.
[4] Ortega y Gasset, José (1987): A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, p. 153.
[5] Estima-se que na América Latina existem mais de 100 milhôes de pessoas com deficiencia (só no Brasil, o Censo Oficial 2010 projeta um contingente de aproximadamente ¼ da populacão de 194 milhôes de habitantes), sendo que mais de 80% desse grupo não desprezível das populacôes latino-americanas sofrem também os efeitos perversos da exclusão econômica, resultado de violacôes sociais sistemáticas que se protraem no tempo sem solucão de continuidade.
[6] Nos termos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, assinada pelos Estados Partes em Nova Iorque: “Desenho universal” significa a concepcão de productos, ambientes, programas e servicos a serem usados, na maior medida possível, por todas as pessoas, sem necessidade de adapatacão ou projeto específico. O “desenho universal” não excluirá as ajudas técnicas para grupos específicos de pessoas com deficiência, quando necessárias. (Artigo 2, parte final)
[7] http://giovanimiguez.com/files/noticia/20120811192037_midia_e_conformismo.pdf (acesso em 13/09/2012)
[8] O Conselho Nacional de Justiça, órgão integrante do Poder Judiciário do Brasil, encarregado de controlar a atuacão administrativa e financeira de todos os seus elementos integrativos (Juízes e Tribunais), conforme os termos do art. 103-B, da Constituicão Federal, considerou pela imposicão de comando gerencial no sentido da producão de estudos e providências quanto à acessibilidade de todos os recintos judiciários para cumprimento em até 120 dias (cf.: Pedido de Providências n° 1236). Essa deliberacão, sobre ter sido compreendida, na origen e na destinacão, como viés de “rota acessível”, tampouco foi inteiramente cumprida até os días que correm. E mais não se tem debatido a respeito. Chegou-se a um ponto de inflexão tal que só a presenca de pessoal qualificado pela vivência, pela condicão e pelo comprometimento será capaz de oferecer resposta adequada, e mesmo assim veladamente resistida.
[9] Art. 5º, Lei nº 7853/89 – O Ministério Público intervirá obrigatoriamente nas ações públicas, coletivas ou individuais, em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas.
[10] Artigo 13 – Acesso à Justiça: 1. Os Estados Partes asegurarão o efetivo acesso das pessoas com deficiencia à Justiça, em igualdade de condicôes com as demais pessoas, inclusive mediante a provisão de adaptacôes processuais adequadas à idade, a fim de facilitar o efetivo papel das pessoas com deficiencia como participantes diretos ou indiretos, inclusive como testemunhas, em todos os procedimentos jurídicos, tais como investigacôes e outras etapas preliminares. 2. A fim de asegurar às pessoas com deficiencia o efetivo acesso à Justiça, os Estados Partes promoverão a capacitacão apropriada daqueles que trabalham na área de administracão da Justiça, inclusive a policía e os funcionarios do sistema penitenciário.
[11] Resende, Ana Paula Crosara de (2008): Acesso à Justiça. Artigo em: Resende, Ana Paulo Crosara de, Vital, Flavia Maria de Paiva: A Convenção sobre as Pessoas com Deficiência – versão comentada. Brasília: CORDE, 2ª. Edicão, p. 68.
[12] http://www.fapepi.pi.gov.br/novafapepi/sapiencia8/artigos1.php (acesso em 12/09/2012).
[13] Moncada, L. Cabral de (1966): Filosofia do Direito e do Estado – Doutrina e Crítica, vol. 2º. Coimbra: Coimbra Editora, p. 342.
[14] Fonte: What inclusion looks like?, Sarantsetseg Otgonlkhagva (Facebook)
[15] Cappelletti, Mauro; Garth, Bryant (1988): Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 29.
[16] Op. cit.: p. 13.
[17] Sassaki, Romeu Kazumi (2010): Inclusão – Construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 8ª. Edicão, p. 167, 168.
Roberto Wanderley Nogueira é juiz Federal em Recife, doutor em Direito Público e professor-adjunto Faculdade de Direito do Recife e da Universidade Católica de Pernambuco.
Fonte: Conjur
  

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