sexta-feira, 4 de junho de 2010

Inclusão e Integração: Cidadania, Relação e Segregação.








Um olhar crítico sobre direitos e preconceitos


Para analisar os objetivos, aspectos e conseqüências da inclusão de crianças com necessidades educacionais especiais, é preciso, antes, discutir e compreender a conquista dos direitos humanos, em contraponto à existência e persistência de diferenças e preconceitos, o que incita-nos, forçosamente, a analisar a história: evolução, mudanças e transformações sociais que, de uma forma ou de outra, propiciaram a necessidade da implementação da inclusão na atualidade.

Em 1948 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um marco histórico a qualquer cidadão, pois que decreta, indica e orienta a premissa de que todos os homens são iguais perante a lei. Hoje, constitui ideário inegável e amplamente difundido, tanto que crer nesta igualdade parece-nos quase tão óbvio quanto crer nas leis naturais. Entretanto, conforme Kluckhohn & Murray (1948) perspicazmente sugerem: “Todo homem é, em alguns aspectos, (a) como todos os outros homens, (b) como alguns outros homens e (c) como nenhum outro homem”. Assim, ao mesmo tempo em que cada homem é igual ao outro sob a ótica biológica enquanto “espécie” ou legal enquanto “pessoa”, e que ainda, sob a ótica social, podem os homens ser reunidos em grupos ao confluir semelhanças, a psicologia traz o conceito de “sujeito”, “indivíduo” onde enfatiza que nenhum é igual ao outro, sob nenhum aspecto, tanto orgânico quanto psíquico; físico ou cognitivo; a educação contribuiria ao entendimento de que cada homem, sendo único, exige um processo de aprendizagem específico de forma a respeitar e coadunar processos idiossincrásicos.

Inegável é que a espécie humana seja dotada de incríveis talentos, capacidades surpreendentes, como Hamlet, de Shakespeare, apaixonadamente exclama: “Que bom trabalho é o homem! Quão nobre raciocínio! Quão infinito nas faculdades! Em forma e movimento, quão expressivo e admirável! Em ação, como parece um anjo! Em apreensão como parece um deus! A beleza do mundo! A perfeição dos animais!“ (Hamlet, Ato II, cena ii). Porém, a capacidade humana além de vasta, apresenta-se não em graus diferentes em cada homem, mas sim através de expressões singulares, pois que todo, todo e qualquer ser humano é capaz de produzir, e imperioso é que nunca se olvide: o produz, não um mais e outro menos, e sim cada um de forma diferenciada porque cada homem é, fundamentalmente, diferente, onde cada diferença marca uma individualidade, uma subjetividade, peculiaridade única, ímpar; por isso todo ser traduz uma natureza rica, multifacetada, ilimitada, de forma pessoal. O que a Declaração Universal veio instaurar foi a igualdade de direitos e deveres e não de personalidades ou características.

Todavia, a riqueza das peculiaridades, as subjetividades de produção e as singularidades de expressão das capacidades, impelem a uma estranheza na relação quando há inabilidade na compreensão das diferenças. Ou seja, nem sempre o homem consegue ser diferente; seja em sexo, raça, cultura, crenças e ainda, em aspectos físicos, como portadores de “deficiências físicas” ou aspectos cognitivos, como “portadores de transtornos mentais” (termos atualmente substituídos pela generalização “portadores de necessidades educativas especiais”, onde subentende-se suas especificidades) . A história tem nos mostrado que em nossa sociedade, o diferente, por não ser conhecido, é, muitas vezes, intolerado, inaceitável e não passível de convivência, gerando a estranheza de relação que infringe espaços e encrosta preceitos equivocados, os ditos preconceitos. Preconceito seria, então, sob certo aspecto, essa inabilidade da relação entre os diferentes; inabilidade que, seguida de carga afetiva negativa, ainda potencializa as diferenças de forma pejorativa, pois que gera ações e tratamentos diferenciados, segregacionistas, excludentes, impelindo o diferente ao abandono, ao encarceramento e até ao extermínio. A Declaração Universal dos Direitos Humanos soergue algum lenitivo para aplacar esta inabilidade.
Historicamente, esta Declaração Universal foi decisivo, mas não o primeiro passo em prol da convivência pacífica e construtiva entre os distintos. Em relação às diferenças cognitivas, a partir da época da Revolução Francesa, observou-se uma série de personagens (Pestalozzi em 1777-1778, Philippe Pinel em 1792, Itard em 1798, etc.) que passaram a defender, mais enfaticamente, as pessoas portadoras de necessidades especiais como dotadas de direitos e deveres a serem garantidos e preservados. Enquanto Pinel defendia que os doentes mentais deveriam ser tratados como seres humanos doentes, e dignos, ao invés de considerados como animais, pois no fundo, eram pessoas como outras quaisquer, Pestalozzi dava importantes e exemplares impulsos social-pedagógicos interessando-se pelo atendimento e educação às crianças esquecidas das classes de baixa renda (Facion, 1998).

Durante mais de 200 anos foi criada, em todo o mundo, uma quantidade significativa de instituições de saúde mental e de educação especial com o objetivo de poder oferecer a esta população específica um atendimento mais adequado e mais humanizado; no entanto, só na década de 50 observa-se em alguns países¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬¬ um real reconhecimento do valor humano e os direitos legítimos destes indivíduos. No Brasil surge em 1952, na cidade do Rio de Janeiro, o primeiro movimento para a criação da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) que buscava defender os direitos das pessoas portadoras de necessidades especiais (mais especificamente os portadores de Deficiência Mental) e oferecer-lhes uma educação especial. Com o avanço das aquisições de novos conhecimentos no que concerne à saúde mental e processos de aprendizagem – em ênfase as infância e adolescência – observou-se uma lacuna em todo este processo de aprendizagem e adaptação social desta população mencionada, ao meio ambiente natural e ao constituído pela sociedade. Ainda que estas pessoas possam receber um atendimento psicopedagógico especial, que busca responder às suas necessidades específicas (deficiência visual, deficiência mental, transtornos invasivos do desenvolvimento, etc.) e a “protegê-las”, elas acabavam e continuavam pertencendo a um grupo de pessoas discriminadas e segregadas, seja porque confinadas em abrigos, asilos e instituições específicas ou, ainda, induzidas a uma experienciação limitada e limitante em círculo constituído unicamente de pessoas outras portadoras do mesmo transtorno. Assim, havia a predominância do tratamento tutelar, impondo a estes indivíduos um significativo limite de liberdade de ir e vir, escolher ou decidir; enfim, gerando uma proteção que não liberta, mas cerceia e impede.

Foi a partir da década de 70 que se intensificaram as discussões em prol de nova mudança e, a partir da década de 80, que se iniciaram vários experimentos mais sistematizados com o objetivo de integrar estas pessoas portadoras de necessidades especiais no sistema da escola regular. A década de 90 foi crucial na expansão das discussões, no avanço da sistematização dos experimentos – inclusive com pessoas portadoras de necessidades especiais mais comprometidas – e na busca de alternativas mais eficazes para atingir os objetivos propostos. Dois eventos e documentos mundialmente significativos lançaram bases para mudanças profundas: um em 1990, A “Conferência Mundial sobre Educação para Todos – provendo serviços às necessidades básicas de educação”, em Jomtiem, Tailândia e outro em 1994, a “Conferência Mundial sobre Educação Especial – acesso e qualidade”, em Salamanca, Espanha. Enquanto que na década de 80 se discutia sobre a integração de crianças especiais e, para isto, criavam-se salas especiais - que apesar das dignas intenções, segregavam - em poucas escolas regulares, na década de 90, já se iniciavam uma série de experimentos e uma grande discussão sobre a inserção destas crianças dentro de salas regulares sem necessitar da criação de salas especiais. Este processo culmina, no final da década de 90 com o início do abandono do uso da terminologia “integração” avançando para a discussão sobre a “inclusão”. Como ressalta Pereira dos Santos (2001), tais mudanças só encontraram terreno fértil com o avanço científico cuja produção e disseminação do conhecimento, em confluência com a velocidade da circulação de informação, possibilitaram a desmistificação de preconceitos, o questionamento da estrutura da sociedade e a busca de um mundo mais democrático. A ressonância destas transformações gerou conseqüências inevitáveis à educação especial. A inclusão, desta forma, visaria a um amortecimento das diferenças trazendo certo cunho prático para a lida com estas diferenças não só no âmbito cognitivo, mas, sobretudo, social, pois que ressalva as capacidades subjetivas e a produção pessoal - absolutamente não-nula porque rica - dos portadores de necessidades educacionais especiais.

Mas a quem importaria a inclusão? Às pessoas com necessidades educacionais especiais porque é uma forma de viabilizar a expressão de suas capacidades, tornando-as legíveis pois que legítima, inspirando-as emergir seus potenciais possibilitando-lhes a conversão em ação e linguagem, ou seja, em relação social. E ao homem comum, tantas vezes classificado como “normal” – diga-se: uma premissa estatística – pois que se a inclusão insta a relação, abarcando, com isso, toda e qualquer relação interpessoal, este “homem normal” conheceria e, convivendo mais intensificadamente com uma pessoa com necessidades educacionais especiais, compreenderia as diferenças e subjetividades, persuandindo-o a uma crítica mais profunda e verdadeira, portanto indelével, acerca da irracionalidade e falácia de seus próprios preconceitos, atenuando em si, e quiçá extirpando, aquela inabilidade decorrente da estranheza pelo diferente. O homem destituído de preconceitos e cônscio da multiplicidade da condição humana reconhece e corrobora, num futuro, as contribuições daquelas “pessoas diferentes”, e de sua própria, rumo à busca de formas outras para a adaptação tanto dos portadores de necessidades educacionais especiais à sociedade, quanto a sociedade a estas pessoas. Desta forma, a inclusão não só infunde e propicia, mas também fundamenta, elabora e assegura relações.

Portanto, pode-se afirmar, sem refutações, que a inclusão avançaria muito além dos muros da escola já que alcançaria terrenos da sociedade. A inclusão é um ato democrático, de cidadania porque atinge a todos e mais, deflagra uma urgência na modificação de nós mesmos para a aceitação do portador de necessidades educacionais especiais não como ser limitado, mas como pessoa produtiva, propelindo-nos a compreensão plena de sua afetividade e desejos, admitindo sua capacidade intelectual e incitando-nos a trazê-lo ao convívio social, já que detentor de opinião e vontades, nos lares, nas escolas, áreas de lazer, núcleos religiosos, centros de pesquisa, empresas e etc.

Atualmente, não se pode falar mais em desenvolvimento de sociedade sem falar do desenvolvimento de seus cidadãos e sendo o portador de necessidades educacionais especiais um cidadão, não se pode deixar de falar em inclusão já que, essencialmente, esta se remete e coaduna-se à Declaração Universal dos Direitos Humanos

Enfim, este indivíduo não é especial, não é excepcional, não é deficiente. É pessoa tanto quanto a qualquer um de nós; é complexo, precioso. Que ama e quer ser amado. Sente prazer. Que erra e constrói. Que chora, sente raiva e felicidade. Que quer fazer parte, pois é parte da sociedade, mas que precisa deixar de ser segregado em partes da sociedade. É membro de um todo e este todo precisa aceitá-lo como parte indispensável do todo. Sendo assim, a inclusão pode ser um prolífero caminho...



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS



1. BUENO, J.G.S. – A Inclusão de Alunos Deficientes nas Classes Comuns do Ensino Regular. Temas sobre Desenvolvimento, v.9, n.54, p.21-7, 2001.

2. FACION, J. R. – Distúrbios Psiquiátricos e Neurológicos, em: FOURNIOL, A . Filho. Pacientes Especiais e a Odontologia, Livraria Santos Editora Ltda, São Paulo, 1998, Cap. VII, Pág. 295-336.

3. GLAT, Rosana; FREITAS, Rute Cândida de. Sexualidade e Deficiência Mental: Pesquisando, Refletindo e Debatendo sobre o Tema 1.a Edição - Volume II. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 1996.

4. KLUCKHOHN, C. & MURRAY H. Personality Formation: The Determinants. In C. Kluckhohn & H. Murray (Eds.), Personality in Nature, Society and Culture. New York: Knopf, 1948.


5. PEREIRA dos SANTOS, Mônica. A Inclusão da Criança com Necessidades Educacionais Especiais. 2001Disponível na Internet. http://www.regra.com.br/educação/ainclusãodacriança.html

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