sábado, 30 de maio de 2009

CEGOS E DEFICIENTES VISUAIS - Aprender a ver uma nova vida

Aprender a ver uma nova vida
Submetido em Sábado, 24/01/2009 - 20:48 por Lerparaver
Com o tema: Deficiência visual Educação Emprego Reabilitação Vida diária
Perder a visão na fase adulta. Há cada vez mais pessoas a perder a visão na fase adulta, principalmente devido a diabetes e VIH. Muitas isolam--se e fecham-se em casa, porque têm medo de cair em buracos ou chocar contra coisas. Mas a solução existe. Há técnicos que ensinam os cegos a andar em segurança e a fazer quase tudo o que é necessário para prosseguir uma vida normal, com estudos, emprego, família e vida social. "Não nos podemos entregar à doença", diz Carlos Manuel Ferreira, que tem 41 anos e cegou em 2005. Na quinta-feira, etiquetas em braile passaram a identificar os artigos que os deficientes visuais compram nos hipermercados

Técnicos ensinam pessoas a ultrapassar deficiência visual

De um momento para o outro, a vida de luz e cor de Teresa Simões mergulhou num mundo de trevas, em que tudo se resume numa palavra: cegueira. Quem perde a visão já na fase adulta considera que "é muito pior do que ter nascido cego". Ficam desorientados e perdidos, sem saberem onde estão nem para onde vão. Alguns até chegam a dizer que "a melhor coisa que podia acontecer era morrer". Mas a vida continua para além da penumbra que lhes tolda a vista. Têm de aprender a usar melhor os outros sentidos com a ajuda de pessoal técnico que os ensina a ver um novo mundo. Há cegos que conseguiram aprender tudo tão bem que garantem ter "uma vida normal como as outras pessoas".

Numa tarde de sábado, foi essa vida normal que a equipa de reportagem do DN encontrou ao entrar num apartamento da Quinta do Pinheiro, em Odivelas. Quem depara com Helena Cristina Fernandes a brincar na sala com as duas filhas gémeas está longe de imaginar que aquela mulher de 42 anos é cega. Tal como o seu marido, José Manuel Fernandes. As crianças, Marta e Márcia, de quatro anos, são normavisuais - vêem normalmente.

Lourinha e muito faladora, Marta ouve a mãe perguntar: "O que é que a mãe é ao pai?" E responde prontamente: "É marida." De grandes olhos azuis, Márcia é mais calminha que a irmã. As duas dizem que os pais, quando eram miúdos, "deviam ser muito traquinas. Caíram e ficaram mal dos olhos. Têm de ir ao médico arranjar os olhos".

Helena estava preocupada com a chegada da equipa do DN, porque tinha lá ido o técnico instalar a TV por cabo e tinha-se atrasado. "Eu gosto mais de ver a SIC Notícias, o Canal História e o National Geographic. O meu marido quer mais é o desporto e elas gostam é do Canal Panda", contou.

"Nunca vi muito bem"

A trabalhar desde há seis anos no serviço informativo do call center da Segurança Social, Helena Cristina revelou já ter avançado com um requerimento "para mudar para uma função técnica", onde possa aplicar o curso de Gestão de Recursos Humanos e Organização Estratégica, que terminou em Julho de 2008, no Instituto Superior de Línguas e Administração. Antes foi telefonista durante sete anos, no Hospital de S. José, em Lisboa.

Mas, até alcançar esta vida normal, Helena teve de lutar muito para aprender a ver de outra maneira. Algarvia de Benafim, no concelho de Loulé, recorda nunca ter visto "muito bem. Por isso, só estudei até à 4.ª classe na escola normal. Ficava mais à frente e perto da janela, para ter mais luz. A professora dava licença para me levantar e ir ver o que ela tinha escrito no quadro".

Para continuar os estudos, "tinha de ir para uma escola em Loulé. Mas não dava, porque só havia uma camioneta de manhã para ir às aulas e outra ao fim da tarde para voltar a casa. Como a essa hora já havia pouca luz, eu não conseguia ver para regressar a casa. Deixei de estudar".

Só aos 22 anos, depois de o médico Luís Cardia dizer que "não havia cura", Helena foi para o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, perto de Santa Apolónia, em Lisboa. "Estive lá seis meses em internato e, de 15 em 15 dias, ia de autocarro sozinha para o Algarve. Para aprender a viver com a deficiência, ensinaram braile, mobilidade na rua e actividades domésticas", recordou Helena, adiantando que faz "toda a lida da casa".

Depois voltou para junto dos pais, no Algarve, que vêem normalmente, tal como a irmã. "Procurei emprego durante um ano, mas não consegui, porque só tinha a 4.ª classe. Resolvi mudar-me para Lisboa e trabalhei ano e meio num lar de raparigas cegas, em Chelas. Estudei à noite em escolas de ensino normal, até terminar o 12.º ano", referiu.

"Só tive problemas nos 8.º e 9.º anos, porque a professora de História não queria cegos nas aulas dela. Mas estudei muito e tive 19,6 valores no exame. No fim, a professora deu- -me os parabéns e já me aceitava nas aulas. Depois até me escreveu uma carta em braile a pedir-me desculpa", recordou.

Na Acapo - Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal, "fiz um curso de recepcionista/telefonista. Entre 2000 e 2004 fui directora da Acapo", contou Helena, adiantando que em 2003 fez provas específicas e entrou para a faculdade.

Desde que tem as gémeas, a sua vida complicou-se um pouco, mas Helena não tardou a encontrar solução: "O infantário fica na Pontinha, mas era complicado ir de autocarro para lá e andar com as duas meninas pela mão, porque assim não podia pegar na bengala para me orientar. Então decidimos comprar um carro e pedimos a uma amiga para o conduzir e levar as meninas à escola e trazê-las a casa."

Escola inglesa foi solução

O caso do pai das gémeas, José Manuel Fernandes, de 45 anos, é menos atribulado, porque sempre viveu em Lisboa: "Aos três anos, tive um tumor raro difícil de detectar. Desenvolve-se no fundo dos olhos e os pais confundem aquilo com uma ramela. Limpam, aquilo desaparece, mas volta e vai sempre agravando. Depois já é tarde para tratar, porque se propaga rapidamente para o interior."

"Fiquei cego dos dois olhos ainda em criança", relatou José Manuel, lembrando que, para começar a estudar, em 1968, "a única solução foi uma escola inglesa. Fui o primeiro cego em Portugal a frequentar escolas de ensino normal, mas em Inglaterra isso já era comum".

Foi revisor de braile para o Ministério da Educação, deu formação profissional em braile e foi director da Acapo. Em 2001 concluiu o curso de Psicologia. Actualmente é psicólogo na Acapo.

Segundo José Manuel, "até aos anos 80, muitos cegos trabalhavam em linhas de montagem de fábricas, porque o trabalho é tão repetitivo que nem é preciso ver. Estudos até dizem que eles têm mais concentração, porque não se distraem com outras coisas. Depois automatizaram a produção, despediram-nos e eles não conseguiram arranjar outro trabalho. Passaram a pedir esmola".

"Há 12 anos a tactear"

Madalena, de 28 anos, vive na Covilhã e passou dois meses no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, em Lisboa. Encontrámo-la na cozinha do centro a fazer sopa, no âmbito das aulas de actividades da vida doméstica. Além da sua visão estar abaixo dos 10%, só ouve de um ouvido.

"Desde há 12 anos - quando a visão começou a reduzir - que ando a tactear, porque nunca me indicaram este centro ou outro sítio para reabilitação", disse ao DN. "Só vejo uma área muito pequena. Não consigo ver uma pessoa inteira, mas apenas um bocadinho dela de cada vez", explicou.

"Já sou casada há sete anos e só este ano é que o meu marido se apercebeu disso, embora eu já lhe tivesse falado no meu problema logo quando começámos a namorar, há dez anos", contou.

Os seus dois filhos - uma menina de três anos e um rapaz com seis - "não têm qualquer problema de visão nem de audição", esclareceu.

"Uma pessoa não é incapaz"

No mesmo centro de reabilitação, Teresa Simões, de 40 anos, aprendeu que "uma pessoa cega não é uma pessoa incapaz". Natural de Toledo, no concelho da Lourinhã, só aos 19 anos descobriu a doença, "que se foi desenvolvendo muito lentamente. Pelos 27 anos houve uma evolução rápida, devido à morte do meu irmão", explicou.

Estudou até ao 11.º ano e desistiu por considerar que "não conseguia continuar, por ver mal", lembrou. Depois trabalhou como secretária e mais tarde como auxiliar de educação num jardim de infância, na Lourinhã, até 1996.

Nesse ano "piorei e achei que devia fazer reabilitação e começar uma vida nova, longe dali e longe de quem me conhecia. Pedi transferência para Lisboa e comecei por ter aulas no Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos".

Foi reintegrada como auxiliar na Escola Nuno Gonçalves, em Lisboa, e passou para a central telefónica da Direcção-Geral do Ensino Superior.

Salienta que "foi muito difícil o período entre descobrir a doença e cegar. Fui a muitos médicos, um disse que havia de chegar um dia e nem um café ia conseguir fazer. Isso foi muito pior do que me dizer que ia ficar cega. Afinal, consigo fazer um café e muito mais que isso".

"Ceguei em 2000. Nesse ano fui fazer o 12.º ano e, entre mais de dois mil candidatos para a Direcção de Serviços de Informação e Documentação do Ministério da Educação, fiquei em primeiro lugar. E é aqui que continuo a trabalhar", contou.

Hoje anda em passo acelerado pela rua, mas nem sempre foi assim. "Em 2002 tive um acidente. Nunca vi o Metro de Lisboa e só conhecia o do Canadá, em que as carruagens estão todas ligadas por mangas. Com a bengala à frente, detectei um espaço livre e pensei que fosse a porta. Avancei e caí entre as duas carruagens para a linha. Alguém viu, gritou e o metro não avançou. Parti o nariz."

"Fiquei com fobias e com medo de andar na rua e no metro", confessou. "Quando chegava a casa, respirava de alívio e pensava: consegui passar mais um dia e voltar sã e salva", lembrou.

"Sou muito vaidosa e dou importância à imagem. Marco os frasquinhos de verniz das unhas com fita gomada ou tiro bocadinhos dos rótulos para distinguir as várias cores", explicou Teresa.

Na sua vivenda na Quinta do Conde, onde vive sozinha, faz todas as tarefas. "Passar a ferro é fácil, porque vou tacteando para sentir se a roupa já está direita. E não pensem que alguém passa a ferro melhor do que eu", disse com um grande sorriso de orgulho.

"Não me sinto dependente e acho que estou muito bem integrada. Ando na ginástica e na hidroginástica e costumo sair com os amigos ao bar, ao teatro e à discoteca. E danço no meio da pista. Não fico lá sentada a um canto", esclareceu.

"Vejo à minha maneira"

Carlos Manuel Ferreira, de 41 anos, deixou de ver em 2005. Antes de começar a frequentar aulas de reabilitação, sentia-se completamente perdido. "Até cheguei a pensar que a melhor coisa que me podia acontecer era morrer", confessou ao DN.

Segundo explicou, o seu caso "é hereditário da parte da mãe, que ainda vê qualquer coisa". Entre quatro irmãos, dois têm problemas de visão. Os outros têm visão normal e nem usam óculos.

"Andei na escola normal, mas não conseguia ler no livro. Tinha de ir ao pé do quadro ver o que a professora escrevia. Só fiz a terceira classe", recordou, adiantando que "o médico dizia que pelos 40 anos ficaria mesmo sem ver. A visão foi diminuindo muito lentamente. Só me fui apercebendo quando comecei a tropeçar nas coisas".

Trabalhou durante 22 anos na distribuição de produtos alimentares e bebidas. No último ano de serviço, em 2005, "já não via, mas conseguia fazer o trabalho, porque já sabia de cor onde ficavam as lojas e onde tinha de ir", explicou esclarecendo que apenas vê "a claridade e o escuro. Não consigo ver a pessoa que está à minha frente". Por isso, ficou de baixa e depois passou à reforma.

"As técnicas da Acapo é que me deram a mão e me fizeram subir, desde há quatro anos. Sentia que tinha caído num buraco, quando deixei de ver", contou Carlos Manuel, considerando que, "a nível psicológico, é mais complicado uma pessoa ver e depois perder a visão. É pior do que ter nascido já sem ver". Para aprender a ser autónomo, também frequentou o Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos.

Residente na Pontinha, em Odivelas, lembra que, "no início, tinha o complexo de andar de bengala. Quando me perguntavam o que tinha acontecido, eu nem sabia o que responder. Era um desconsolo tão grande"...

"Sentia-me muito mal. Ficava fechado em casa. Chegava a estar na cama e não queria ir para as aulas de reabilitação. Estava quase a desistir", conta Carlos, com um ar desolado. Agora diz ter uma certeza: "Não nos podemos entregar à doença."

Actualmente, frequenta o programa Novas Oportunidades, onde escreve num computador adaptado. "Estou a terminar a 4.ª classe e quero continuar os estudos. Também tenho aulas de carpintaria, braile e informática na Associação Portuguesa de Deficientes Visuais", revelou.

"As aulas de reabilitação deram-me uma nova visão da vida. Agora consigo ver. Vejo à minha maneira. Já fui ver teatro de revista. E gostei", frisou.

"No outro dia pedi a um vizinho para me emprestar a bicicleta dele. E andei mesmo de bicicleta, sem chocar com nada e sem pôr os pés no chão. Ele nem queria acreditar no que estava a ver", relatou Carlos Manuel, cheio de orgulho.

http://dn.sapo.pt/2009/01/24/sociedade/aprender_a_uma_nova_vida.html

Processo de reabilitação só começa depois de "fazer o luto da doença"

Milagre. "Todos os cegos têm a secreta esperança de voltar a ver", diz a directora do centro de reabilitação

Quando ficam cegas, "as pessoas chegam aqui completamente perdidas, todas encolhidas, enroscadas, quase em posição fetal para se protegerem, porque têm medo de cair ou chocar contra as coisas", diz Conceição Luís, directora do Centro de Reabilitação Nossa Senhora dos Anjos, em Santa Apolónia, Lisboa. "São pessoas que viam normalmente e, de repente, cegaram e ficaram perdidas", referiu ao DN.

"Trabalhamos imenso na recuperação da auto-estima. No primeiro mês e meio, a nossa função principal é tirar as pessoas do buraco em que se encontram", explicou, pois "entraram em depressão e ainda não aceitam o facto de terem cegado. Têm de fazer o luto. É preciso que a pessoa aceite que está cega".

"Não posso ensinar braile nem pôr a bengala na mão de uma pessoa que ainda não assumiu que está cega", esclarece a directora do centro, revelando que "todos têm a secreta esperança de que vão voltar a ver. Acreditam que a ciência vai evoluir e resolver o problema".

Salienta que "uma pessoa só está reabilitada quando está integrada. Por isso, tentamos colocar as pessoas em postos de trabalho, através dos serviços do Instituto do Emprego e Formação Profissional. Mas é muito difícil, porque os responsáveis das empresas ainda não estão muito receptivos. O objectivo é colocá-los na função que queriam desempenhar antes de ficarem cegos".

"Se não ficarem com uma actividade, eles voltam a fechar-se em casa e a isolar-se. A solução é um emprego ou outra formação, como, por exemplo, o programa Novas Oportunidades para os que não têm a escolaridade completa", declarou.

E dá um exemplo: "Tive aqui um jovem de 20 anos, com descolamento da retina, que tinha feito várias operações e chegou a uma altura em que já não havia solução. Cegou."

"Nas aulas participava e era expert em informática. Quando não estava nas aulas, ficava fechado no quarto. Perguntámos-lhe porque se isolava assim e ele respondeu: "Quando não estou nas aulas, durmo, porque enquanto durmo sonho e enquanto sonho eu vejo", contou.

"Está a tirar um curso de programação informática e é DJ numa discoteca", revelou Conceição Luís, considerando que, "se ele fosse embora daqui sem ter uma colocação noutra actividade, acabaria por se fechar em casa e ficar outra vez perdido".

Adianta que, "normalmente, eles dizem que após terem cegado ainda conseguem imaginar as coisas às cores. Mas depois passa a ser tudo a preto e branco".

Este centro, que pertence à Segurança Social, existe há 46 anos e tem capacidade para 22 internos, que vêm de fora de Lisboa e ali permanecem durante o processo de reabilitação. Tudo é gratuito, incluindo refeições e alojamento. Quem vive na capital frequenta as aulas em regime externo.

Os períodos de reabilitação "são normalmente de três meses para utentes com baixa visão e de cinco meses a um ano para casos de cegueira total", informou a directora.

Ali ensinam mobilidade de quatro níveis, como movimentarem-se no interior do centro, na zona envolvente, nos transportes públicos e na área de residência. No programa de actividades da vida diária, a equipa de reportagem do DN encontrou Maria Bárbara na cozinha a receber formação e a confeccionar um bolo de ananás. Residente em Vila Viçosa, vê abaixo dos 10%. "Desde os 17 anos que tenho baixa visão, mas há cinco anos, devido a uma depressão, o problema agravou-se muito", contou Bárbara, que trabalhava no Centro de Saúde de Vila Viçosa, mas desde há três anos está em casa.

"Os meus filhos já são crescidos e vão-me ajudando, mas não me sentia muito bem a cozinhar e às vezes atrapalhava-me, porque não conseguia ver as coisas. Por isso vim para aqui. Agora já consigo fazer quase tudo mais à vontade", relatou, com um sorriso de satisfação.

A directora do centro revela que também acompanham os utentes "ao teatro, ao cinema e a outros eventos para perceberem que podem continuar a ter vida social".

Foram ver o filme Ensaio sobre a Cegueira, na antestreia, com auscultadores que lhes transmitiam por voz o que passava nas legendas. Salienta que, "no final do filme, um cego recupera a visão. Ficaram com aquela mensagem de esperança que os cegos podem voltar a ver".

"Gostei muito do filme. Aquele retrato das pessoas que perdem a visão de repente é mesmo o estado em que elas nos chegam aqui ao centro: completamente perdidas", observou Conceição Luís.

DANIEL LAM

Fonte: http://dn.sapo.pt/2009/01/24/sociedade/processo_reabilitacao_comeca_depo...

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