Fortaleza, 23 de novembro de 2013.
Excelentíssima Senhora Presidenta da República Dilma Rousseff,
Primeiramente, devo apresentar-me. Sou cidadão canadense. Trabalhei 35 anos em uma universidade do Canadá como professor-pesquisador na área de psicopedagogia. Formei um grande número de professores especializados para atuação em salas especiais reservadas aos alunos que apresentam necessidades específicas. Ao longo do tempo, venho direcionando minhas reflexões sobre a aplicabilidade social e os efeitos da frequentação da sala de aula especial. Meus trabalhos de pesquisa e o meu direcionamento pessoal levaram-me pouco a pouco a ter consciência da necessidade de uma mudança profunda da escola; quer dizer de seus valores e, consequentemente, de suas práticas.
Atualmente, sou professor visitante da Universidade Federal do Ceará. Há sete anos, aceitei fervorosamente o convite de uma equipe de pesquisadores, desta instituição, para a realização de uma pesquisa apoiada pela CAPES. Tratava-se de uma pesquisa que visava o estudo dos processos de transformação de uma escola pública de educação fundamental de Fortaleza em uma escola com práticas inclusivas. Resumindo, uma pesquisa que ia, completamente, no mesmo sentido dos meus interesses pelo desenvolvimento de uma escola “nova”, de uma escola “diferente”, uma escola fundamentada na valorização das diferenças individuais. No início, minha colaboração com essa equipe de pesquisa deveria durar três meses. Porém, eis-me aqui ainda trabalhando no seio desta equipe que, incansavelmente, desenvolve projetos de pesquisa que visam o desenvolvimento de intervenções educativas destinadas a favorecer a inclusão das pessoas que apresentam alguma necessidade específica em suas comunidades. A vontade do povo brasileiro de transformar a escola pública – para permitir o acolhimento, na sala de aula regular, de todos os jovens, e isso sem distinção – está diretamente ligada ao fato de que eu continuo a contribuir ativamente para os trabalhos deste grupo de pesquisa.
Em 2008, o Brasil adotou um decreto que conduziu ao desaparecimento das escolas e das salas especiais no serviço público. Doravante as escolas públicas se viam na obrigação de matricular todos os alunos independente de suas características. A escola tinha como meta acolher a todos nas salas de aula regulares. Tratava-se de uma decisão política progressista, decisão esta que eu mesmo gostaria muito de ter visto no meu próprio país.
Desde então, eu assisti, com entusiasmo, a construção de uma nova escola fundamentada sobre os princípios da educação inclusiva. Como exemplo, eu poderia citar as atividades de aperfeiçoamento no domínio de educação inclusiva oferecidas aos professores de todo o Brasil, assim como a atuação, nos meios escolares, dos serviços do Atendimento Educacional Especializado (AEE) e enfim, a formação somente pela Universidade Federal do Ceará, de mais de 6000 professores aptos a atuarem nas salas Recursos Multifuncionais que oferecem os serviços do Atendimento Educacional Especializado. Trata-se de um trabalho colossal realizado em muito pouco tempo a fim de assegurar um suporte adequado e o melhor acolhimento possível para os alunos público-alvo da educação especial nas escolas e salas regulares do Brasil inteiro.
Esta iniciativa do povo brasileiro e de seus representantes constitui um esforço corajoso com o objetivo de romper com a escola pública tradicional. Esta escola repousa, em geral, sobre normas geradoras de categorização. Ela favorece muito a competição e pouco a cooperação entre os alunos. Apesar do discurso “oficial”, os valores de igualdade e de direito e respeito que sustentam a inclusão social não são verdadeiramente respeitados. A escola tradicional não faz apelo a uma ação educativa que permite aos alunos de meio socioeconômico desfavorecido ou com necessidades especiais viverem experiencia de valorização. Ela constitui em si mesma fonte de exclusão social e de marginalização.
A emergência de uma escola fundamentada sobre os princípios da educação inclusiva constitui, na minha minha opinião, a pedra angular da construção de uma sociedade onde prevaleçam os valores de “respeito pela vida humana” e de “igualdade de direitos”. Não se pode ter verdadeira inclusão social sem uma presença afirmativa desses valores em uma sociedade. Não existem genes que possam garantir de imediato a emergência desses valores nos seres humanos. É sobre a escola que recai, primeiramente e acima de tudo, a responsabilidade da construção destes valores.
Uma escola que rejeita toda forma de segregação e que graças à cooperação e à contribuição entre os alunos, é capaz de criar as condições necessárias para o desenvolvimento destes valores. Uma escola que valoriza a participação de todos, reconhecendo a riqueza que constitui a “diferença” para o desenvolvimento dos saberes e das habilidades sociais. Essa valorização do papel social do aluno só é possível na medida em que ele é reconhecido, por seus pares, como uma pessoa que traz uma contribuição, mesmo modesta, ao desenvolvimento de saberes, saber-fazer e saberes-ser coletivos. É finalmente um meio de vida onde o aluno pode se perceber como um indivíduo que contribui para o desenvolvimento de saberes e saberes-fazer coletivos e retirar disso múltiplas vantagens. Como uma escola que só acolhe os alunos que possuem necessidades especiais pode constituir um meio favorável para o papel social de um aluno; valorização que passa pelo olhar do outro; se este outro é também um indivíduo marginalizado e cujo papel social não é valorizado?
Claro que mudanças tão profundas no meio escolar não acontecem sem uma série de questionamentos e de desequilíbrios no que concerne a escola pública brasileira. Consequentemente, não se deve esperar que esta escola, tão enraizada nestas práticas tradicionais, se transforme da noite para o dia. É preciso tempo, e uma verdadeira vontade de mudança por parte dos atores escolares e dos governantes para realizar mudanças tão importantes.
Eis então que, recentemente, eu ouvi, pela mídia, as intenções de Senadores a favor da aprovação do Plano Nacional da Educação; eles propõem uma regressão; em um momento em que o Brasil é, particularmente, proativo no que concerne o respeito e a promoção dos direitos dos homens, adiantando-se com sua política de acolhimento e de manutenção em sala regular de todos os seus jovens cidadãos. De fato, eles propõem que a regulamentação, que torna obrigatória a inclusão, em sala de aula regular dos alunos público-alvo da educação especial, seja modificada. Esta inclusão não seria mais obrigatória, ela se faria “de preferência, em sala de aula regular” e seria de escolha dos pais, a decisão do tipo de escola para seu filho.
Com a integração destas palavras no texto da regulamentação, palavras que, aparentemente parecem banais, é todo o espírito da lei que perde seu sentido. De fato, é reconhecer explicitamente que os pais de um aluno que apresenta necessidades especiais podem decidir que seu filho seja objeto de segregação, frequentando uma sala especial, e é reconhecer, também, que o Brasil aceite de novo a segregação de uma parte de seus cidadãos. Pois, deve tratar-se, finalmente, disso. É, de fato, permitir que um bom número de alunos seja marginalizado, evoluindo em autarquia, quer dizer em um meio que não permite troca com o exterior. Que retrocesso!
A escola ou sala de aula especiais constituem meios de segregação ou de marginalização dos alunos. Elas não constituem o quadro educativo mais propício para o desenvolvimento intelectual e socioafetivo dos jovens e isso, pouco importando as características destes últimos. Aliás, a presença de salas e escolas especiais, como é o caso mais ou menos, generalizado no mundo, está bem longe de ter dado os resultados esperados. A literatura científica é muito eloquente neste assunto. Muito esforço e muito dinheiro para pouco resultado.
Pessoalmente, eu prefiro ver o aluno que apresenta necessidades específicas evoluir desde o início da sua escolarização na sala de aula regular, mesmo que isso seja um pouco difícil e mesmo que as condições de escolarização dos alunos que possuem necessidades especiais neste meio não sejam sempre perfeitas. É neste meio que acontece a vida real e onde ele se socializa realmente. Aos que acham que, às vezes é necessário, acolher um aluno em um meio segregado, eu respondo que é na água que se aprende a nadar e não na borda da piscina com a desculpa de que ele não sabe nadar. É em situação social “normal” que se aprende a viver “normalmente”. E para mim, não existe bom momento ou momento ruim para evoluir na sala de aula regular. Tem-se acesso quando se atinge a idade e eu estimo que não é marginalizando uma criança, mesmo com as melhores intenções do mundo, que se vai desenvolver nela as ferramentas úteis para a sua adaptação. É dentro de um contexto que isso deve acontecer.
Eu, provavelmente, ouvi todo o arsenal de argumentos que foram colocados para justificar a presença de uma escola paralela, destinada as crianças e aos jovens que apresentam necessidades especiais. Esses argumentos são numerosos. Eles vão, desde o despreparo da escola atual para acolher esses jovens, considerando a falta de formação dos professores e da ausência de meios pedagógicos eficazes em um contexto da educação inclusiva, até a necessidade de impedir que esses alunos prejudiquem o progresso dos outros alunos de sala. Esses argumentos, há tempos, nos os ouvimos e acabam por nos fazer acreditar que a escola pública está condenada à inércia total e que ela é incapaz de se defender e de se transformar, fato este que sou totalmente contra. Estes argumentos fazem parte, na minha opinião, de “l´ordre d´un discours d´un marchand de tapis” e se revelaram totalmente estéreis. Eles só fazem retardar a emergência de uma escola capaz de valorizar o papel de cada aluno, onde pouco importam suas características. O Brasil possui educadores competentes e capazes de transformar a escola regular, para fazer dela um meio de formação favorável ao desenvolvimento de todos os jovens que lhe são confiados e pouco importa a natureza de suas necessidades. É preciso, é claro, lhes dar ainda tempo e meios para isso.
Não há mais lugar para a procrastinação. É preciso muito trabalho para construir essa nova escola, da qual o Brasil tirará vantagens a longo prazo; tanto pelo reconhecimento da qualidade do seu sistema de educação, como pelos valores democráticos e pela solidariedade social de seus jovens cidadãos. Alguns países como a Itália e a Noruega já souberam administrar o desafio e adotar outros caminhos em direção a este objetivo. Eu não vejo nenhuma razão que possa justificar que o Brasil não alcance o final do seu projeto, que é a escola inclusiva. Porém, para isso, é necessário que haja uma negociação entre todos os atores escolares e uma reafirmação dos engajamentos feitos em 2008. E, principalmente, é preciso que o projeto educativo de cada escola pública do Brasil testemunhe os valores veiculados pela educação inclusiva, que ela faça dele uma prioridade e que as medidas concretas sejam aplicadas nas salas de aula. Não há mais tempo para belas palavras, menos tempo ainda para a inércia. A vez agora é da ação, uma ação construtiva que gere resultados positivos.
Por outro lado, é preciso que o meio universitário faça, também, a sua parte para a concretização desse grande projeto. Como imaginar que esse projeto de transformação da escola pública brasileira possa excluir a implicação das universidades, assim como uma ação combinada por parte delas? Até então, o que se observa é que há, neste meio, uma grande timidez nas ações.
De fato, seja no nível da formação inicial dos professores ou no nível de aperfeiçoamento dos educadores, tudo acontece de maneira como se esse projeto de transformação profunda não fizesse parte das suas prioridades. Ou seja, as universidades oferecem apenas algumas atividades dispersas que englobam os alunos que apresentam necessidades específicas. Porém, elas ainda não responderam a sua função primeira, que é a transformação de seus programas de formação inicial e aperfeiçoamento dos educadores escolares.
Parece-me essencial que esses programas tenham como base a questão da acolhida e do acompanhamento de todos esses alunos, quer dizer, a gestão da diversidade ou da diferença na escola, na sala de aula, mais especificamente. Ou seja, para responder a essa condição, será exigido dos professores, do meio universitário, grandes esforços de negociação, uma vez que todos deverão agir para que a gestão da diferença tenha um verdadeiro caráter transversal na formação, para que essa diferença seja o fio condutor, o que não é, de maneira nenhuma, o caso atual.
Enfim, parece-me urgente que surjam, nos meios universitários, vários programas de pesquisa concentrados especificamente sobre a questão do desenvolvimento das práticas educativas no contexto da educação inclusiva. A questão é importante, e é essencial um grande investimento de recursos humanos e financeiros.
Eis então, vossa excelência, o fruto da reflexão de um não-cidadão do seu magnífico país. Eu lho manifesto, humildemente, esperando que ele tenha alguma utilidade quando das decisões tomadas, decisões estas que terão um imenso impacto sobre o futuro dos jovens cidadãos do Brasil.
Jean-Robert Poulin, Ph.D., professor visitante da Universidade Federal do Ceará
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