domingo, 13 de setembro de 2009

A especial arte da superação


Já faz algum tempo que o mundo vê os portadores de necessidades especiais com outros olhos. Seja no espaço familiar, no trabalho, nas escolas ou nas próprias esferas de convívio social, as ferramentas de inclusão deles têm obtido espaço – afinal de contas, toda oportunidade de igualá-los e mostrar seu potencial é válida. Porém, há uma esfera que ainda dá seus primeiros passos para recebê-los; esfera que já foi restrita a poucos, mas hoje quer como nunca estar de braços abertos. E não é para pouco: nas artes, a convivência com a diversidade é regra geral. E, em se tratando deste universo, não há limitação – física ou mental – capaz de deter a criatividade e destreza de um criador. Provam isso grandes e eternos nomes universais, como o insuperável músico Ray Charles, imortalizado no cinema por Jamie Foxx.

A velha assertiva de que a arte não possui barreiras não virou clichê por acaso. Companhias de dança para cadeirantes e paraplégicos, apresentações musicais de deficientes visuais e até mesmo exposições pictóricas que podem ser apreciadas pelos que perderam a visão: tudo isso já pode ser encontrado ao redor do globo. Aqui no Pará, as coisas ainda caminham de forma lenta, mas os primeiros esforços já começaram a aparecer – alguns abraçados não pelo Estado, e sim por pessoas comuns que vêm na arte uma forma de superação das limitações.

Um exemplo de artista especial cujo talento moveu montanhas é o escritor Romeu Ferreira dos Santos Neto. Portador de Síndrome de Down, o jovem de 24 anos já tem no currículo dois livros de poesia lançados, além de um CD com letras de sua autoria musicadas pelo cantor e compositor Mário Cantuária. A história de vida dele, afirma sua mãe, a professora aposentada Sandra Suely Santos, sempre esteve atrelada de alguma forma ao universo da literatura.

'Desde que soubemos que ele era portador da Síndrome de Down, começamos a pensar em como ajudá-lo a desenvolver suas capacidades cognitivas. O mais bonito de tudo é que ele mostrou desde pequeno uma atração pela literatura. Ele lia tudo o que via pela frente, vivia dizendo frases belas, e eu fui anotando todas sempre que ele pensava nelas. Dizia sempre a ele: ‘meu filho, quem lê tem o mundo em suas mãos’. Quando ele criou o hábito de escrever, tive certeza de seu talento', relata a mãe, orgulhosa.


DEDICAÇÃO


Dos primeiros versos a seu primeiro livro, 'Água de algodão', lançado em 2001, Romeu percorreu um caminho de dedicação e esforços. Até aprender a escrever, dona Sandra transcrevia seus poemas, mas logo o poeta afinou a escrita e criou intimidade com as máquinas de datilografar. Anos depois, ele aprendeu a lidar com o computador e desde então transcreve não só poemas, mas contos, crônicas e outros gêneros literários sempre que a inspiração bate.

Além disso, Romeu desenvolveu o talento pelas artes plásticas, criando belas paisagens em óleo sobre tela que podem ser vistas em seu site (http://www.romeuneto.com.br). 'Acredito que ele esteja sempre aprendendo novas linguagens. Isso só pôde acontecer porque desde cedo quisemos que ele conseguisse superar seus próprios obstáculos e nunca o deixamos perder a empolgação', conta Sandra.

Desde 2006, Romeu colhe os frutos de seu segundo livro, 'Ventos mergulhantes', editado pela Paka-Tatu e considerado por seus admiradores um marco de superação. O livro contém cerca de 80 poesias, e chamou a atenção de gente de fora do Estado – a prova é que revistas como a 'Sentidos', editada em São Paulo e voltada à inclusão de portadores de necessidades especiais, publicaram reportagens sobre seu trabalho. Romeu também marcou presença em todas as Feiras Pan-Amazônicas do livro realizadas em Belém, seja com sessões de autógrafos ou bate-papos com o público e com a imprensa.

Consciente do valor que a arte teve e tem em sua vida, Romeu afirmou à reportagem que a arte foi seu principal mecanismo de expressão. 'A escrita é um instrumento que uso para me comunicar e expressar minhas idéias. Não perco o estímulo para continuar produzindo nunca', comentou o jovem poeta, que tem entre seus autores Machado de Assis, Shakespeare e o marajoara Dalcídio Jurandir. Com muito bom humor, ele garantiu que anda escrevendo mais do que nunca e já adiantou que tem livro novo vindo por aí. 'Estou preparando o meu primeiro romance, deve sair ou em dezembro ou no ano que vem. Está numa fase inicial, ainda', assinalou.

Exemplo de talento local vence fronteiras

Mas não é apenas no espaço familiar que o talento pode ser valorizado desde cedo. Às vezes, há grupos que se doam exclusivamente a oferecer oportunidade para que os artistas portadores de algum tipo de limitação vejam a arte como ofício – é o caso da Companhia de Dança Roda Pará, a mais tradicional do Estado dedicada a bailarinos deficientes físicos, coordenada pela educadora física, professora e pesquisadora Marilene Melo, de 61 anos.

Com mais de oito anos de atividade e um trabalho voltado à dança contemporânea, o grupo surgiu a partir de oficinas e seminários de inclusão organizados pelo Instituto de Artes do Pará (IAP), entidade apoiadora do projeto, e desde então vem trazendo bons resultados para o Estado – a prova disso é que ele foi o primeiro do Pará a fazer parte da 'Arte sem barreiras', política internacional inserida no Brasil pela Fundação Nacional de Arte (Funarte) que visa à inclusão de portadores de necessidades no mundo das artes.

Atualmente, fazem parte do Roda Pará quatro bailarinos fixos, sendo dois deles portadores de necessidades especiais (um cadeirante e outra que possui limitações psíquicas e de locomoção). Segundo Marilene Melo, lidar com este perfil de artistas é uma espécie de lição de vida. 'É incrível a gente ver como o trabalho é desafiador, mas flui bem quanto há talento de sobra. A linguagem da dança depende mais do esforço e paixão do bailarino que de seu corpo, nós aprendemos aos poucos a lidar com as limitações', orgulha-se.

A rotina de ensaios da companhia de dança é composta de várias etapas. Primeiro, Marilene desenvolve uma pesquisa individual, para depois ensaiá-la junto aos bailarinos. Em seguida, cada um se propõe a realizar exercícios individuais e praticar as coreografias, de forma a afiná-las para performances ao vivo. O resultado foram participações aclamadas em eventos como o Encontro Internacional de Dança do Pará (Eidap), onde ganharam os prêmios da categoria de portadores de necessidades durante dois anos consecutivos, além da aprovação em editais e prêmios vinculados à Secretaria de Cultura do Estado (Secult). A nível nacional, Marilene já teve projetos de pesquisa ligados à atividade no Roda Pará aprovados em prêmios como o Além dos Limites, da Funarte, e nos editais do Instituto Itaú Cultural. Em novembro passado, o grupo ainda viajou a Sergipe, no Nordeste, para participar da Mostra Albertina Brasil, também do programa 'Arte sem barreiras'. Marilene afirma: a repercussão nacional não poderia ser melhor.

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