sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Estudo Epidemiológico Brasileiro sobre Transtornos do Espectro Autista


Estudo Epidemiológico Brasileiro sobre Transtornos do Espectro Autista

Paula CS, Ribeiro SH, Fombonne E, Mercadante MT. Brief Report: Prevalence of Pervasive Developmental Disorder in Brazil: A Pilot Study. J  Autism Dev Disord. 2011 Feb 21; [Epub ahead of print] PMID: 21337063
Como saber quantas pessoas estão assistindo um determinado programa de televisão?
Relativamente simples: sabe-se o numero de televisões de uma região, escolhe-se uma amostra (um certo numero de televisões) representativa (um certo numero que possa refletir o total de aparelhos) ao acaso (para evitar, por exemplo, que sejam escolhidas apenas aquelas televisões que estão sempre desligadas) e verifica-se, no horário X, quantas televisões estavam ligadas, e dessas, quantas estavam ligadas no programa Y.
Se quero saber quais os programas que os hóspedes de um hotel com 100 quartos, e com uma televisão em cada quarto, costumam assistir em um determinado horário, apenas tenho que nesse horário bater de porta em porta e perguntar: a TV está ligada? Que programa você (s) estão assistindo. Pronto; faço uma lista: 25 quartos estavam vazios, 25 tinham hóspedes, porem, não estavam assistindo televisão,  1 tinha hóspedes mas não responderam, 49 televisores estavam ligados (36 assistiam o programa Y, 10 o programa X, e 3 assistiam programas K, W, Z). Assim, fico sabendo que 36% dos meus hóspedes (36 televisores) assistiam o programa Y.
Mas, e se eu quisesse saber quantas pessoas no Brasil estavam assistindo o programa Y? Como perguntar para todos os brasileiros que tem televisão, o que estavam fazendo naquele horário? Aí entra o estudo da probabilidade!
Como não é viável (isto é, não é economicamente vantajoso, pois a metodologia para contar um a um os milhões de televisores ligados no programa Y seria muito caro) ir de casa em casa e perguntar qual o programa estavam assistindo; escolhe-se uma amostra (um numero X de televisores a ser investigado). Sendo essa amostra  representativa de todos os televisores, podemos admitir que a porcentagem de televisores da minha amostra que estivessem ligadas no programa Y, seria representativa do total. É assim, que os institutos de pesquisa realizam, por exemplo, as pesquisas eleitorais!
Se a amostra é homogênea e o que estou procurando está muito frequentemente representado naquela amostra, tenho bastante segurança em predizer o numero envolvido com o objeto do meu estudo.
Mas, e se o meu objetivo é estudar uma coisa que não está muito frequentemente representada, por exemplo, quero saber quantos televisores do meu hotel estavam ligados no canal TV Coréia, sendo que naquele dia apenas um quarto era ocupado por turistas coreanos, e todos os outros por turistas latinos.  A probabilidade de um dos televisores estar ligado no canal TV Coréia é menor do que estar ligado em um dos outros 150 canais, mas sempre existe, e na minha amostra pode estar representada principalmente pela presença do casal coreano.  Mas e se o casal de coreanos eram os hóspedes que ocupavam o quarto que não respondeu a pergunta?
Essa é a situação que enfrentamos ao estudar a frequência dos transtornos do espectro autista. Eles não tem uma grande representatividade na população, isso é, traduzido para o nosso hotel ele poderia ser comparado à nossa pergunta sobre o canal TV Coréia. Assim, fica fácil imaginar que se acertamos tudo; por exemplo, o casal de coreanos estavam em um dos quartos que responderam estar assistindo o programa Y e não a TV Coréia, a frequência do canal TV Coréia deve ser mesmo igual a ZERO, porem se o quarto que não respondeu estava ocupado por esse casal, e eles estavam assistindo ao canal TV Coréia, a frequência desse canal no hotel seria de 1%, mas teríamos ficado sem saber!
O grande desafio de realizar estudos epidemiológicos de transtornos com frequência relativamente baixa é buscar controlar os possíveis erros. Foi esse o desafio que os pesquisadores brasileiros decidiram aceitar. Assim, realizaram um estudo transversal, em Atibaia (São Paulo), com uma população de mais de 10.000 crianças entre 7 e 12 anos de idade.
Para diminuir a chance de erros, decidiram avaliar apenas um bairro, que fosse representativo da cidade, onde residiam 1470 crianças de 7 a 12 anos. Esse bairro é inteiramente servido pelo Programa de Saúde da Família, contando com visitas domiciliares realizadas pelos agentes de saúde. Com isso, os pesquisadores procuraram ter certeza que pelo menos uma pessoa, teoricamente treinada para reconhecer problemas de  saúde, indicaria os casos que pareciam ter sintomas do espectro autista. Isso é, em vez de bater de porta em porta e ver em cada casa se tinha alguma criança do espectro, eles pediram para pessoas treinadas (e que receberam um treinamento extra sobre espectro autista) para indicarem quem eram as crianças que poderiam ter problemas que sugerissem transtorno do espectro autista.
Além disso, após uma campanha de esclarecimento sobre autismo, eles pediram para as escolas indicarem todos os alunos que pareciam ter problemas de comportamento. Com isso, imaginavam que não iriam perder nenhum caso possível de transtorno do espectro autista.
Todos os casos indicados foram avaliados por profissionais habituados a trabalhar com crianças do espectro.  Por fim, foram em todas as clinicas especializadas e hospitais para verificar se em algum deles existiam crianças residentes daquele bairro e que tinham o diagnóstico de transtorno do espectro autista. Após todos esses cuidados os pesquisadores encontraram uma frequência de 27.2/10.000, ou aproximadamente 0,3%. Quais são os números absolutos por trás dessas porcentagens?
Considerando as 1470 crianças do bairro, 12 preencheram critérios para transtorno do espectro autista segundo um instrumento de varredura (o ASQ –  Autism Screening Questionnaire). Esses 12 casos significam uma frequência de 0,82% do total de crianças; porem quando especialistas em autismo foram avaliar as crianças apenas 4 realmente preenchiam critérios para o espectro autista, implicando em uma frequência (denominada prevalência) de 0,272% (ou 0,3%)!
O que podemos aprender disso tudo? (1) seguindo os mesmo cuidados que a maioria dos estudos internacionais, a frequência do espectro autista nessa população está entre as mais baixas da literatura; (2) isso pode estar relacionado às características de nossa população (esse é o primeiro estudo populacional em um pais como o nosso!); (3) podem existir acasos que interfiram nos resultados; por exemplo, o casal de  coreanos estarem no quarto assistindo o canal TV Coréia, mas não responderam à pergunta. Ou seja, imagine que existissem dois irmãos com transtorno do espectro autista que moram no bairro, mas que estavam internados em outra cidade, e com isso não entraram no estudo. A  frequência já saltaria para 0,4%! Essas dificuldades, ditas metodológicas, são provavelmente as principais causas para as diferenças de prevalência encontradas nos estudos realizados.
E afinal, porque esse tipo de estudo é importante?  Por vários motivos; para que sejam estabelecidos programas de saúde publica, para que  saibamos quantas vagas nas escolas devem existir para atender a demanda dessa população especifica, para que saibamos quais os  custos associados a cuidar do desenvolvimento dessas crianças por cada região, etc. Além disso, esse tipo de estudo pode vir a esclarecer quais os fatores que estariam associados ao transtorno do espectro autista. Por exemplo, os estudos realizados no Japão e na Coréia sugerem uma frequência maior de transtornos do espectro autista quando comparado com a frequência encontrada nesse estudo brasileiro. Talvez isso revele uma influencia da carga genética segundo a etnia estudada, ou do ambiente que a pessoa vive. De qualquer maneira, esse é o encanto da ciência; um estudo pede novos estudos!

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